Ego

A minha foto
Pisei todos os caminhos, incluindo aqueles que estavam cobertos de Trevas. Evitei voar sobre eles mesmo na certeza de que o Sol brilhava mais acima daquele lugar. Toquei-me de Trevas e, já sem asas, ausentei-me do Sol.

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Terra Solta

Existe terra solta debaixo dos meus pés, e debaixo da terra solta já não existe mais nada. Um monte de terra acumula-se à minha frente, é terra solta que tapa o calor da alma, de uma alma que já não pertence à terra que a cobre. E em tudo o que vejo encontro pequenos montes de terra solta, não consigo fugir-lhe. Fugir-lhe era pedir muito, e eu tenho tão pouco tempo para pedir seja o que for. Enquanto os observo caem gotas de dor vindas do céu pálido e triste, é Inverno, é Inverno dentro de mim, dentro de nós. Será sempre Inverno?

Quero saber o que escondes de mim, terra solta! Confessa-te e eu deixo que vás para sempre, diz-me só aquilo que procuro incessantemente, sem encontrar. Estou aqui, será que me vês? Ainda pergunto coisas sem sentido, coisas que ninguém mais pergunta, porque mais ninguém corre atrás de vazios, não há ninguém que mergulhe em poços secos só para sentir a profundidade do poço. Eu mergulho, mergulho sempre. E sinto a profundidade do poço, não me assusta. É tão pequena comparada com a profundidade do ser que já não sou. Estou no fundo do poço e mesmo aqui vejo terra solta, sinto o cheiro da terra solta. Ainda existem as marcas de água no poço vazio, como ainda existem as tuas marcas nos lugares onde já não estás, onde nunca mais vais estar e onde eu vou continuar a ver-te.

Corre! Corre! Chamam o teu nome e sabes que tens de correr. Não te deixes ficar para trás, não te guardes para ti, não guardes dentro de ti o tamanho todo do Inverno, não vais conseguir, não há quem consiga. Anda. Não tenhas medo. Sei que sentes ainda. Sei que vês ainda coisas que os vivos não conseguem ver, tu vês e não vives mais, porém viverás sempre nos espaços, nos gestos, nos sorrisos, no teu sorriso que nenhuma terra solta é capaz de apagar.

Ouves? Tenho de te perguntar! Ouves? Sei que sim, quando mais ninguém me ouvir, tu vais ouvir sempre. Como eu hei-de ouvir-te sempre, mesmo quando não falas, quando o teu silêncio magoa mais do que os gritos e o choro que calas-te dentro de ti até ao fim. Fim. Fim. Costumo dizer que o fim não existe, sim o fim não existe. Quando pensas ter chegado ao fim, já sem espelho, sem músicas tristes, sem ensaios de inutilidade, o fim esmorece, ganha tamanho, e continuas, com espelhos e reflexos, com os tons tristes dessas melodias, com a inutilidade de todas as coisas inúteis. Imagina um círculo, agora imagina-te a caminhar sobre a linha que o delimita, isso é o fim, o fim é essa linha sobre a qual caminhas, caminhaste sempre. Hoje ainda caminhas, e hoje à semelhança do que acontecia antes, também ninguém te vê com os pés sobre a linha, com os pés sobre a terra solta.

Falta pouco, podia faltar tanto. Não conheço o caminho da distância até aí. Mas nesse caminho de luz ausente, que se faz daqui até aí, foste deixando ecos do sorriso mentiroso que disse verdade a tanta gente. Sinto. Oiço. Vejo. Silêncio, mais silêncio. Existe um mundo inteiro para abraçar, não existem braços suficientes: os braços estão caídos sobre o corpo, os braços estão amarrados com tempo, os braços estão gelados e esquecidos dentro de baús de solidão. Abraça-me, abraço-te. Os meus braços estão soltos, também estavam os teus. Eram os nossos braços soltos, e agora apenas os meus. Vê-me aqui, quem sou eu? Quem eras tu? Perguntas sem resposta, respostas que não o sabem ser, e que por isso não deviam existir. E eu, que também não sei ser, continuo a existir. Tu, não soubeste ser, ainda assim existes em tudo o que foste. Páro. Olho. Ainda, ainda.

Deixa-te estar, aí nesse pedacinho de lugar. Que eu estou aqui sem lugar onde ficar. Amanhã é um dia diferente. As crises pairam por aí, rio-me delas, elas riem-se de mim. Rimo-nos uma para a outra. Ri-te também! Sabemos bem que existe terra solta suficiente para as duas e por isso não nos importamos, nem eu, nem a crise. Ela pode vir habitar-me e enquanto isso terá de me aturar, aturamo-nos. Conheço-a. Trato-a por “tu”. Digo-lhe, hoje não, hoje está tudo tão maravilhoso aqui. E fica a terra solta que ainda não é um monte de terra solta a tapar o calor da alma, de uma alma que já não pertence à terra que a cobre. Fica a terra solta a ver o Inverno passar pelo meio de nós, dentro de nós. Caminho, caminhaste sobre a linha, algures encontrarei, encontraste terra solta que cobrirá, cobriu com calor o Inverno dentro de mim, dentro de ti.






sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Dez minutos

Hoje vi-te. Estavas ali mesmo à minha frente. Dentro da minha cabeça uma voz perguntou-me se serias mesmo tu, os meus olhos responderam que sim. Podia ter-te chamado, não chamei. Fiquei só a ver-te como se te visse realmente. As pessoas passeavam-se pela rua, os passos apressavam-se numa viagem que eu desconhecia. Para que queria eu saber daquelas viagens, sempre tão distantes da minha? Mas tu estavas ali e eu podia ter-me apressado a ir ter contigo, não fui. Olhei discretamente, olhei-te para te reconhecer nos gestos que fazias. Durante dez longos minutos fiquei parada a lembrar-me de como eras, e pensei que já não podias ser assim.
Hoje sei que te vi e talvez mais ninguém te tenha visto. Os dez minutos que se seguiram ao momento em que os meus olhos se cruzaram com a tua presença foram tão longos, tão distantes, foram dez minutos que levaram mais de dez minutos a passar. Não me viste, ainda bem. Não queria que me visses ali, depois de tudo o que não fiz por ti, não queria que dissesses que não podia ter feito nada. Na minha cabeça a voz perguntava sempre se serias mesmo tu, os meus olhos responderam sempre que sim. O meu coração não sabia o que responder e por isso mantinha-se ali sossegado, carregado de pessoas que não eram como tu, não eras tu.

Hoje pensei que te tinha visto, e eu nunca te tinha visto antes. Pensei, e se não fosses tu? Nesse momento podia ter-me arrependido de não ter ido ter contigo para te perguntar se eras tu a pessoa que eu via, tão perdida e sozinha como nunca tinhas estado... não me arrependi. Se fosses mesmo tu não queria que me dissesses que eu não podia ter feito nada.

Depois dos dez minutos, agora eternos na minha memória, vi-te ir embora outra vez, e eu nunca te tinha visto ir embora assim.
Quando foste, na outra vez, não te vi partir, quando soube já tinhas ido e eu não pude fazer nada. Desta vez vi-te caminhar sem direcção nenhuma, com passos frágeis e cansados de quem está cansada demais para continuar. E senti o frio, a dor, as lágrimas, a viagem. Quando foste, olhei e não te vi. Uma voz na minha cabeça perguntava se serias mesmo tu, os meus olhos encheram-se de lágrimas e calaram a dúvida, o meu coração escondeu-se para não ter de responder. Então a voz na minha cabeça adormeceu. Voltei as costas e pensei, que se fosses tu, aquela era a primeira vez que te via.

Vi-te, depois do tempo todo em que exististe sem que eu te visse, depois do tempo em que deixaste de existir para que eu te pudesse ver.

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Rouba-me de Fevereiro

Rouba-me Fevereiro. Rouba-me daqueles dias como se me roubasses de um fim tão certo. Preciso que me afastes das semanas daquele mês, afasta-me! Mas não me perguntes porquê, vou responder-te sempre que não sei, e na verdade eu não sei mesmo. Mesmo que soubesse iria responder-te na mesma que não, que não sei... que não sei que Fevereiro magoa e corta, afoga e sufoca, eu não sei que Fevereiro é tão triste e tão escuro como quando a noite se abatia sobre mim levando-me de novo para o caminho inseguro, vazio, pesado do meu pensamento.
Um dia pensei que Fevereiro era um mês igual aos outros, depois percebi que não. Fevereiro é diferente: cansa, rasga, arde. É tão pequeno e ao mesmo uma imensidão, pode ser uma eternidade. Sabes a língua dos meses? Deixa-me falar com Fevereiro. Tenho de dizer-lhe que o conheço tão bem, que nunca vou conseguir esquecer ou perdoar.
Rouba-me de Fevereiro, e das semanas que se seguem. Deixa-me ficar só contigo, sem tempo, sem as horas que passam como se também elas fugissem de Fevereiro. E se alguém te perguntar porque me roubas-te do segundo mês do ano diz-lhes que não sabes, e na verdade não sabes mesmo, mas se soubesses sei que continuarias a dizer que não, que não sabes que Fevereiro me acordou bruscamente para me contar uma história tão triste, que não sabes que Fevereiro me fez sentir sozinha e perdida, que me fez vaguear sem direcção à procura da resposta que não chega nunca. Fevereiro, os teus dias são solidão, são a ferida aberta que nunca cicatriza.
Se puderes leva-me para longe de Fevereiro, e eu nunca mais vou chorar pela solidão dos seus dias.

terça-feira, 3 de agosto de 2010

Pesadelo

Disseram-me: ele é um pesadelo. E eu na inocência do pesadelo da vida, acreditei! Quando olhava nos olhos do pesadelo havia uma chama de raiva nos seus olhos que eu via arder por detrás do silêncio da língua dele. Fechava os olhos para não ver a chama e assim já não sentia a raiva do pesadelo que me cobria o corpo.
Um dia disseram-me: ele é um pesadelo. E eu, na inocência do pesadelo do mundo, acreditei. Quando olhava nos olhos do pesadelo via coisas que não se podiam ver, coisas que não sorriam para mim, e eu sorria para elas. Sorria para não sentir o frio do sorriso fechado dessas coisas a cobrir-me o corpo.
Um dia disseram-me: ele é um pesadelo. E eu, na inocência perdida do pesadelo que era o pesadelo dele, não acreditei. Olhei-o nos olhos e vi verdades de ódio e morte, verdades de luz e cores que eu não conhecia, vi as verdades que se escondiam debaixo das cicatrizes que não eram as minhas. E as coisas que o habitavam, aquelas que não sorriam, continuaram sem sorrir mas eu sorri. O meu sorriso agarrou as verdades e as coisas, trancou tudo dentro de mim...
Um dia disseram-lhe: ela é um pesadelo. Ele, na minha inocência perdida, na inocência de quem já foi pesadelo, não acreditou. Agarrou-me pelas mãos ensanguentadas, beijou-me os lábios mortos pelo veneno e levou-me para onde os pesadelos não importam.

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Deixou o resto à tua guarda

Diz-me o que ficou por dizer, a tristeza que refugiaste de silêncio e o mundo inteiro que calaste dentro do teu pequeno espelho. Mostra-me o que escondeste no teu grande, enorme peito, tudo aquilo que fechaste nas mãos suadas de medo.
Deixa-me entrar para lá da porta que trancaste, a porta trancada da vida que esqueceste do outro lado, no meio do Oceano. Não tenhas medo! O lago espera por ti, quer acalmar a corrente forte que te puxa, que te prende o ar. Escreve o lago em inglês, porque em inglês é tudo sempre mais igual. Sorri! E guarda-me lá um espaço, um espacinho nas luzes que levaste e não quiseste dizer... Não te censuro, uma luz é algo tão precioso, e se eu fosse a ti teria feito o mesmo, se ao menos eu fosse como tu. Mas não sou, e serei cada vez menos, porque o tempo passa e distancia-me do momento onde ficaste, e eu vou continuando até que um momento fique comigo. Às vezes queria ser, queria saber de ti, do coração que bate, do coração que parou tão perto. Do lugar onde estou se tivesses gritado eu podia ter-te ouvido, e se ouvisse... nada me garante que terias ficado.
No meio do oceano, é tão grande o Oceano. Vejo-te e estás longe de ti, longe do lugar. Se eu soubesse onde moras podia ter-te levado a casa, mas eu não sabia, ainda não sei, e hoje é tarde para bateres à porta, embora ainda haja quem espere ver-te chegar mesmo sabendo que não chegas nunca.
Chegaste: a nave central é a casa, na igreja onde moras, se eu soubesse que lá estavas talvez tivesse ido, ou não.
Sempre Com Tanto Tempo. Dá-me tempo, pára o meu tempo. Dá-te mais tempo, podias ter-me dado tempo para parar o tempo daquele momento. Olha-me aqui a procurar restos de ti no infinito da tua identidade, eu não sei nada e o que sei não me chega. Tudo o que ficou por dizer na conclusão inacabada arde no lugar onde a porta permanece fechada, como se ainda estivesses lá dentro. A torneira que deixa a água pingar lentamente, é como a chuva que cai lá fora e que tu não ouves porque tudo o que querias ouvir está no meio do oceano onde hoje navegas à deriva. Levaste contigo tanto tempo, mas foi tão pouco o tempo que levaste comparado como que deixaste, levaste o mês e os dias daquele mês e embrulhada neles levaste a chave da porta que fechou na eternidade o teu sorriso.


sábado, 3 de julho de 2010

Estou viva. deixa-me pensar

Procuro as palavras. As palavras certas. As palavras que conseguem dar voz aos meus pensamentos calados. Agarro no dicionário da minha memória, nas gavetas vazias da minha mente, tenho de encontrar o que procuro. No meio daquela confusão imensa: ideias, visões, pensamentos breves e superficiais que se encaixam num único pensamento profundo e eterno; vazios, um poço seco que anseia por um água que nunca teve, uma dor que carrega em si tantas outras, espaços amplos onde cabe tanta gente sem que lá se encontre alguém. Vejo o muro, a corrente, a ponte. Em cada lugar procuro as palavras. Em cada momento procuro as palavras certas. Perdi-as, é isso que penso. Mas o que penso é um mundo, e um mundo é tanta coisa que não se pode calar, ou guardar em pensamentos mudos, pensamentos que se fecham por dentro sem nunca entender a falta que fazem cá fora. Tatuei-me de dor. Penso, e pensar não me chega para encontrar as palavras certas. Olho-me por dentro, tantas palavras, a tinta de uma caneta avança sobre o sangue nas minhas veias, desejo ou vontade. Penso, e o que penso fecha-se em mim. Os pensamentos são correntes que se arrastam pelas minhas cordas vocais, fico muda. Preciso de encontrar as palavras certas. Avanço, não quero ser vista, sinto-me transparente. Não me vejas, não me magoes, não encontres os meus pensamentos... frágeis e melancólicos pensamentos! Por favor, deixa-me esconder, deixa-me ficar abraçada aos meus medos enquanto procuro as palavras que nunca serão a minha voz. Estou aqui, entre quatro paredes brancas, uma pequena luz ilumina as paredes, existe tinta na caneta que a minha mão guarda. Os meus olhos procuram nas paredes as palavras que não encontram, e esses palavras ausentes fazem-me tanta falta.
Na ausência das palavras sinto com intensidade dupla, sinto calada porque assim sinto mais. Queria escrever as palavras certas, mas faltam-me essas palavras; falta-me, por vezes, o verdadeiro significado do “certo”. Tenho uma missão impossível, encontrar o que desconheço, algo que nem sei por onde anda. Vejo o muro, a corrente, a ponte. E vejo as palavras que se transportam de uns para os outros, de uns para o nada. Penso e escrevo, descrevo o que penso sem pensar nas palavras, porque os pensamentos traduzidos pelas palavras certas não podem ser os meus pensamentos.
Pensa, existo; sou porque vivo, e vivo porque penso. Estou viva, deixa-me pensar.

domingo, 23 de maio de 2010

Mutilação

Chega muda e transparente. Ninguém adivinha que se aproxima de forma inevitável. É um monstro que como um vento forte arrasa tudo á sua passagem. Arrefece os corpos e rouba as almas, deixa ficar o vazio e o peso da ausência. Ignora o choro, as palavras, os pedidos em desespero. Sempre insensível e surda. Arranca da terra as raízes da vida, atrás destas vão partes de outras raízes, mutiladas para sempre. Na memória que fica quando parte, depois de ter parado o sangue num corpo qualquer, há-de ouvir-se sempre o eco do choro, o sabor amargo da derrota.

O rasto que fica é negro, desfocado e quase assassino. Tudo o que sobra é memória, e a memória é tão pouco. A saudade de uma presença que já não se sente, que nunca mais se sente, e uma vontade de dizer palavras que terão de permanecer caladas para sempre só porque já não existe quem tinha de as ouvir.

...Mutilada para sempre pela tua ausência.

sábado, 22 de maio de 2010

Imagem que se reflecte no espelho, uma voz que fala lá de dentro para o interior da minha mente. Grita comigo a voz bruta e gelada.
Fecho os olhos, toco o espelho, toco a voz.
Os meus dedos congelam, a voz é gelada, seca.
Imagem que se reflecte no espelho, cabelos negros e pesados caem sobre um rosto pálido e triste.
Olha-me nos olhos o reflexo no espelho.
Lágrimas de sangue, choro as lágrimas de sangue que se afastaram do reflexo e encontram em mim a fonte.
Aproximo-me do espelho, sinto que já não sou eu: que sou os gritos, o frio, a loucura acorrentada ao rosto pálido e ao nome que não sei decifrar. Pequenas gotas caem do chuveiro criando um cântico irreal e frágil, música que conforta a dor causada pela lâmina afiada da faca.
Mão fechada, a força toda guardada na mão, lágrimas de sangue mancham o chão e a mão continua fechada pela força. Raiva. Uma linha que se traça no escuro, é a direcção que a força na mão deve seguir. Dois segundos. Um barulho, um grito. Sangue que escorre pela mão para se juntar ás manchas que as lágrimas deixaram no chão. Frio. O espelho partido.
Sentada no chão sem que exista mais o espelho nem o reflexo, olho para a porta e vejo: cabelos negros e pesados que caem sobre um rosto pálido e triste.

quarta-feira, 19 de maio de 2010

Dissociative

Perdi-me. Agarrei-me a um momento breve e triste e perdi-me. Fugi de mim para outro “eu” e esqueci-me de como voltar- A minha casa estava tão fria e ausente, tão escura, parecia estar de luto por mim. Os sentimentos sem nome, sem identidade pesavam-me no corpo e arruinavam-me o futuro e eu queria fugir deles. Apeteciam-me as lágrimas para me lavar o corpo dos sentimentos que me perseguiam mas já não sabia como chorar. Calei-me. Guardei a vontade de chorar, vontade que não sabia como passar disso mesmo. Abracei-me como se te abraçasse e despedi-me de mim. Sabia que não ia voltar porque estava perdida.

Estou perdida e não sei como voltar mas insisto em não me despedir como se soubesse.



segunda-feira, 19 de abril de 2010

Mais uma Rosa

As lágrimas deslizam pelo rosto dela. A sua pele pálida fica roxa de raiva e tristeza. Os sentimentos empurram-se e confrontam-se dentro dela enquanto tudo desabafa à sua volta. Existe um sentimento que ela não sabe como controlar, um sentimento que tem sabor à ferrugem que pinta o portão do casarão velho, sabor à cinza que é libertada durante a erupção de um vulcão. Ela sai de casa, fecha a porta com força, lá dentro a moldura que estava em cima da mesa caiu, o vidro partiu-se sobre a fotografia que a moldura protegia, o vento pegou na fotografia e fê-la rodopiar até à lareira. As chamas da fogueira consumiram as cores da fotografia. Ficaram só o vidro e a moldura, espalhados pelo chão. Ela estava também espalhada pelo chão, dentro de si algo queimava, e o que a queimava roubava-lhe as cores, como as chamas haviam roubado as cores que delimitavam os corpos na fotografia. Correu pelas ruas pintadas de preto e branco, empurrou pessoas que não a sentiram, as suas lágrimas tocaram as mãos de pessoas e elas não sentiram, como poderiam sentir? Ninguém viu como os sentimentos a matavam lentamente como um veneno que se apodera do sangue num corpo até que todo o sangue seja veneno.
Ela corria e pensava que ninguém ia perceber a dimensão da dor dentro dela e por mais que lhe dissessem que tudo ficaria bem ela sabia que isso não ia acontecer; ela corria e chorava enquanto pensava que o tempo não ia curar as feridas abertas, as feridas abertas no corpo, por dentro do corpo; ela corria e morria e só pensava que podia perdoar tanta coisa se soubesse como se perdoar por ter confiado. Os passos iam-se tornando mais largos, ela corria cada vez mais devagar, os pensamentos eram cada vez mais escuros e pareciam pesar-lhe no corpo. Ela já não podia com os sentimentos que lhe pesavam no corpo. Parou. A força ausentou-se dela e caiu de joelhos no chão de terra. Olhou para todos os lados e não existia ninguém. A solidão habitava aquele espaço como a habitava a ela. Por dentro ela sentia-se terra e lama, chuva gelada, vento forte e cinza. No espaço dentro dela tudo se assemelhava ao espaço fora dela. Não existia nada lá fora, e já não existia mais nada lá dentro. Viu o seu reflexo numa poça de água e quis ser ela o reflexo, ela sentia-se o reflexo desvanecido e frágil de tudo o que poderia ter sido. Ela olhava o céu e pensava que ainda podia ser capaz de lhe perdoar se soubesse como se perdoar.
A força regressou a ela. Ergueu o corpo lentamente e sorriu. Voltou as costas ao lugar da solidão e começou a correr. O peso dos sentimentos fugiu-lhe. Ela corria depressa, corria por um caminho escuro, um caminho que era cada vez mais escuro e estreito. E sorria. Ela corria e sorria e pensava que se soubesse como se perdoar ainda o poderia perdoar. Mas ela sabia que nunca se perdoaria por ter acredito e por isso jamais seria capaz de lhe dar o seu perdão. O caminho estreito, o escuro, ela a correr. Abriu a porta, entrou em casa, pisou a moldura e o vidro partido da moldura. Subiu as escadas em direcção ao quarto. Entrou no quarto com pressa de ver o que ele escondia. A cama desfeita, as roupas espalhadas pelo chão. O corpo dele espalhado pelo chão. A lembrança: ela deitada ao lado do corpo dele, do corpo dele espalhado pelo chão; ela abraçada ao corpo dele, as lágrimas dela a tocar-lhe a pele morta e o sangue. Ela estava de pé, mãos coladas na barriga que crescia invisível, e lembrava-se. O cheiro a sangue aumentava, ele não podia ver as mãos dela coladas na barriga que crescia invisível. Ela saiu do quarto, fechou a porta, desceu as escadas apressadamente, pegou na chave do carro e partiu.
Mamã onde está o pai? e uma voz que responde: está longe, mas ele manda-te esta rosa, meu amor. E a verdade vai-se escondendo por detrás de cada rosa até formar um roseiral. Mãe, nunca percebi porque são negras as rosas que o pai manda.

domingo, 18 de abril de 2010



Sabes de mim? Um dia perdi-me num nevoeiro que passava pela porta de minha casa, nunca mais me encontrei. O meu corpo no meio do nevoeiro foi levado pelos meus pés que caminhavam sozinhos. Não sei para onde me levaram os pés, para onde me levou o nevoeiro. Agarrei-me às mãos de um desconhecido que passava, um desconhecido que me olhava e que me via sem saber que o que via já não era eu. Não podia ser eu, não era eu aquela que os pés guiavam numa direcção sem direcção nenhuma, não era eu aquela que o nevoeiro envolvia e arrastava sem pedir permissão, não era eu que as mãos daquele desconhecido agarravam e puxavam tentando fazer-me regressar para onde nunca estive. Mas o desconhecido e as mãos do desconhecido não tiveram força para me roubar daquela mancha espessa de névoa, a força dele não lhe bastou, e eu já tinha dado toda a força que algum dia exitira em mim. Gastei a força que nunca tive a fazer de mim degraus de uma escada para os ajudar a subir. A escada que eu fui foi-se desfastando com o tempo, foram subindo sem que vissem que me fragilizava, ninguém reparou que na escada de mim havia noite e frio, haviam passos ásperos e pesados que enegreciam o meu espírito.
No caminho que os meus pés construíram vi tanta dor, dores que estavam fora de mim e que eu puxei e aprisionei no meu pequeno mundo, varri dos caminhos as dores que voavam perdidas, empurradas pelo vento. Poluíam a vida e eu não podia deixar. Guardei todo o lixo que eram aquelas dores, guardei todo o lixo e o lixo preencheu-me de nada. As mãos dele podiam proteger-me, mas só se ele soubesse e sentisse e visse como eu.
Cheguei a um sítio qualquer, cheguei a um sítio qualquer onde estava ainda mais perdida de mim do que de ti. Era tudo tão branco, caíam penas de anjo do céu, penas de anjos e de corvos misturavam-se e matavam-se em quedas rápidas. Quantas me tocaram a pele antes de se matarem mesmo à frente do meus olhos. Agarrei as penas todas, todas as penas que consegui agarrar e guardei-as no cofre do meu destino. Guardei as penas que salvei da morte predestinada. Deitei-me no chão frio e senti o frio do chão mistirar-se com o meu corpo frio e ausente. Fechei os olhos com força e tentei ver se conseguia descobrir-me no escuro que se abria por detrás dos meus olhos fechados. Uma mão tocava-me o cabelo, uma mão tocava-me o rosto, uma mão tocava-me os lábios. Uma mão de luz abraçou-me a escuridão. Abri os olhos e não vi a mão, não vi de quem era a mão. Olhei o céu coberto de tristes sinas, tristes almas habitavam aquele céu. Senti-me flutuar, os meus pés deixaram de tocar o chão. Os ramos secos das árvores mortas levantavam-me do chão e colocavam-me mais perto das almas tristes que deambulavam ao longe, almas tristes acompanhadas por cânticos negros. Vi-me no meio daqueles tristes espectros despedaçados, sem destino, sem salvação. Restava tão pouco de vida no meu sangue, restava tão pouco de sangue no meu corpo ferido e pálido. Agarrei as penas de anjos, penas de corvos, juntei-as e formei inúmeras asas, distribuí-as pelas almas deambulantes, depois fiz dos restos frágeis de mim uma escada: escada quebrada e que abanava ao mínimo toque de vento. Disse-lhes: Dou-vos asas para voar, uma escada que vos entrega um caminho de paz e luz, peço-vos as vossas dores, as lágrimas, os sentimentos ameaçadores e a loucura do vosso inferno. Agora vão! Estão livres do espaço pequeno que vos aprisionava, estam livres para fazer bem ao Mundo que vos fez mal, estão curadas das feridas que o Mundo vos infligiu. Agarrem as pessoas do Mundo e deêm-lhes as vossas asas: as pessoas do Mundo precisam dessas asas para descobrirem que são capazes de voar. Quando todas as pessoas do Mundo tiverem umas asas o mundo estará entregue às mãos de anjos e vocês ter-se-ão esquecido que um dia existiu uma palavra no dicionário que significava: "Sofrimento físico ou moral; aflição; mágoa.", não existirá mais dor no Mundo. Por último apaguem o céu que conhecem e criem um novo céu, porque no céu de agora existirei eu a carregar o que, outrora, foram as grandes dores dos Homens.

sexta-feira, 2 de abril de 2010

Sombra

Afastei-me da sombra que me acompanhava. Ela perseguiu-me, seguia lado a lado comigo. Eu e a sombra. As pessoas olhavam e acenavam, diziam "bom dia" e "boa tarde", eu acenava-lhes e a sombra também. Tentei ignorar a sombra, deixá-la ficar para trás enquanto ela dormia sobre o tapete de névoa do meu quarto. Quando pensava ter escapado, olhava para o lado, a sombra. O ombro da sombra colado no meu ombro.
Eu ia a chorar, a sombra ia como sempre: sombra. As pessoas viam-me e ao passar sorriam e diziam "bom dia" e "boa tarde". Porquê? Porque é que ninguém me pergunta se preciso de ajuda, o que se passa comigo, porque fogem de mim gotas de orvalho, porque me afogo no sangue da minha alma? Corri para casa. A sombra correu ao meu lado, sempre com os passos coordenados com os meus, numa coordenação tão perfeita que chegava a irritar.
Cheguei a casa, fui à casa de banho, acendi a luz que dava cor de fogo à casa de banho mas que mantinha a sombra sempre sombra. Queria lavar a cara, arrancar-lhe as lágrimas. Abri a torneira, as minhas mãos encheram-se da água da torneira e tocaram-me o rosto. Ocorreu-me olhar o espelho, ver se se notava que tinha estado a chorar. Olhei. E nesse instante eu vi a sombra mas não me vi a mim.

Procuro uma predominância de luz num lugar qualquer
preciso de encontrar aquele ponto que é o centro do meu universo.
E sempre que te procuro, meu fiel servidor, algo deixa de me pertencer…
em lençóis de tempo eu desmorono, ressuscito e tropeço.
Caminhando sobre uma aresta de névoa solta e fria
recuo até ao dia da nossa triste derrota,
ver-te longe e condenado à noite sombria;
perdido entre o sonho intenso e o clamar da gente morta.
Deixando de intervir no teu caminho sem retorno
deixo-me ficar com a minha eterna solidão,
abrigada nas asas de um corvo sem dono.
Perco-me assim, triste fim o meu, que é feito da salvação?

quinta-feira, 1 de abril de 2010

Tempo.
Quero mais tempo. Precisava de mais tempo, queria ter o tempo que não tenho para voltar atrás. Queria rebobinar a minha vida até ao momento em que, pela primeira vez, fiz alguém sofrer, porque foi a partir desse momento que percebi que dói mais saber que magoei do que quando me magoam.
Dou passos lentos por aquelas ruas estreitas da minha Vila, daquilo que um dia foi uma coisa totalmente diferente. As ruas são as mesmas, as pedras das calçadas são aquelas que já pisara antes, antes do tempo de hoje. As paredes que me olham ainda estão de pé. O rio. O mar. Está tudo no mesmo lugar, tudo pertence ao mesmo espaço, nada se alterou.
Fui eu que mudei. Fui eu quem alterou o significado das coisas, o tempo deu-me tempo para isso. Não sei se era isso que queria, às vezes ainda desejava sentir tudo como sentia antes; outras vezes não, outras vezes olho para tudo e penso que o facto de sentir algo diferente quando os meus olhos vêem as mesmas coisas que viram durante anos, há alguns anos, indica que dentro de mim, no espaço em mim onde tudo estava desconcertado e confuso, onde a obsessão e o sangue se entrelaçavam pelo meu corpo e onde o veneno me consumia lentamente com o objectivo de me fazer sentir bem o sabor amargo da minha morte, houve uma mudança. Levaram-me a uma oficina onde concertaram o que estava desconcertado, puseram no sítio certo cada peça de mim. Fui, parcialmente, reconstruída.
O tempo.
O tempo que já passou depois do momento em que, pela primeira vez, fiz alguém sofrer por mim, já ficou por lá, longe demais para que eu consiga, ainda, agarrá-lo. Quero sofrer pelos momentos em que no tempo deste tempo perdido, fiz alguém sofrer. Quero a dor dos outros nas gavetas da minha dor. Todas as dores a preencherem um vazio que fica cada vez mais vazio.
Vejo os sorrisos: falsos, hipócritas, invejosos, destrutivos, ameaçadores. Vejo as lágrimas: límpidas, puras, sangue da alma que nasce nos pulsos. Prefiro as lágrimas aos sorrisos, excepto se for o sorriso de uma criança. Amontoem sobre mim os sorrisos das crianças, a vida dentro das crianças que é ainda a verdadeira vida, seres humanos, sensibilidade e verdade.
Quando voltar a passar pelas ruas estreitas, pelas pedras da calçada, pelas paredes que ainda estão de pé eu vou ser duas, ou três, ou quatro, ou sei lá quantas vou ser! Vou ser uma para cada momento, vou agarrar cada momento que caminha até mim com a forma de uma folha branca manchada de uma tinta preta, porque alguém, ao levantar-se da mesa derrubou o frasco de tinta preta sobre a folha e nunca mais voltou para limpar a tinta que pingava o chão e que escurecia o chão. E para agarrar cada momento tenho de ser muitas, tenho de ser muitas para colocar em cada uma de mim um momento diferente: alegrias separadas de tristezas, amor separado de ódio, gritos separados do silêncio, lâminas separadas dos pulsos, as palavras cruéis separadas do abraço que ainda sinto por ter perdido.
Não vou ser muitas. Não vou ser duas, ou três, ou quatro, ou sei lá quantas! Vou ser uma só, uma só a ser amarrada aos momentos, a ser agredida pelos momentos, a ser amada pelos momentos, a ser a que grita e chora e que tenta lavar o sangue das feridas abertas, a que abraça e é abraçada como se não houvesse mais nada e mais ninguém, vou ser só uma, vou ser só eu.
Sentada sobre o último momento de que me recordo, olho-me por dentro: sensibilidade, tristeza, vazio, loucura, amor, vozes, querer, querer muito, cuidar, proteger, dar-me sem querer receber nada em troca, nada. Olho-me por fora: cicatrizes. Existe uma lágrima a fugir de mim, a minha alma sangra, sinto-me tão longe e não sei onde estou, sinto falta, uma falta que não tem origem, não sei o que me falta. Oiço o riso, gargalhadas, pés que correm. Vejo, é uma criança que corre sozinha no meio de flores de todas as cores, uma criança que ri e que dá gargalhadas só porque as borboletas e os pássaros fazem voos magníficos sobre ela, deita-se no meio das flores e conta as nuvens, e ri das figuras que encontra nas nuvens, bate palmas e pula de alegria porque o gatinho perdido encontrou a mãe.
A criança vê-me, aproxima-se, toca-me, oferece-me uma flor e sorri. Eu pergunto: como te chamas meu amor, ela hesita, mas acaba por responder, chamo-me Joana e tu?

domingo, 28 de março de 2010


Se soubesse que ia ser assim tinha-te deixado do outro lado do mundo. Ter-te-ia empurrado para fora das correntes da minha carência antes de conseguires sequer tocar a fragilidade da minha pele.
Mas eu não sabia!
Abri-te a porta: é uma porta tão leve, tão transparente. Não é difícil transpô-la.
Tocaste-me a pele e eu sorri. Olhaste-me os olhos e eu vi as cores do mundo. Abraçaste-me e eu suspirei. Fechei os olhos com força: queria ter a força para fazer aquele momento durar para sempre. E se não o pudesse fazer durar para sempre no tempo do Mundo, queria faze-lo durar no nosso tempo, na nossa (talvez unicamente minha), ainda pequena, construção.
Mas eu não sabia! Não sabia que ias queimar a minha pele com o teu toque, que ias encurralar-me nos teus olhos e sufocar-me nos teus braços. Eu não sabia que ias fazer tudo isso e que depois ias fazer do meu tempo um tempo diferente do teu: dois tempos que não tinham como se cruzar. Se eu soubesse...
Tentei de todas as formas impedir-te de ir, de partir de mim: agarrei-te sem que sentisses, chorei-te sem que visses mesmo quando chorava diante de ti, gritei por ti mesmo sabendo que não me ouvias, atirei-me para o chão coberto de nada e rastejei enquanto chorava lágrimas de sangue, lágrimas de sangue que nasciam nos meus pulsos.
Nunca me prometeste nada. Nunca me disseste "Para sempre!". Nunca me disseste "Vou desfazer o nosso tempo e transformá-lo em dois: tu segues no teu e eu no meu. Em direcções opostas."
Eu não sabia! Eu não queria saber! Mas se soubesse...
Se eu soubesse ter-te-ia aberto a porta transparente e leve que dá acesso ao lado desprotegido do meu ser despedaçado, ter-te-ia deixado tocar-me a pele mesmo sabendo que o teu toque era de fogo, ter-me-ia encurralado nos teus olhos, e ter-te-ia deixado sufocar-me nos teus braços. Porque mesmo sabendo de toda essa desgraça se iria abater sobre mim, eu só queria ter-te! Porquê? Porque nenhuma dor é maior do que a dor de estar ausente de mim na presença da própria solidão.

quinta-feira, 25 de março de 2010

Carpe Noctem

Não queria despedaçar-me, fragmentar-me. Enquanto vos olhava de cima para baixo pensava que podia voar sobre todos vocês, as penas das minhas asas cairiam sobre os ombros de alguém que soubesse fazer com elas um monte de vida que me permitisse sobreviver à queda.
Cair. A queda foi a primeira coisa que senti quando me dei conta de mim. Comecei por cair devagar, as penas fugiam-me das asas fortes e grandes, das asas protectoras. Depois o processo tornou-se rápido: quanto mais me aproximava do vosso lugar menos protectoras se tornavam as minhas asas. As penas já não caíam por si, eram-me arrancadas à força pelo vento que soprava ecos de miséria, fragilidade, abandono, culpa. Despareceram-me as asas. As penas ficaram sujas da lama que os vossos pés carregavam, que a vossa alma emanava. Desfizeram-se, afogaram-se, ausentaram-se.
Sem asas, sem penas nas asas que já não tinha: perdi tudo aquilo que fazia de mim o que era (por fora). Aqui dentro: no peito, no fundo do peito, no corpo, nos ossos e na carne que protege os ossos, no sangue, nas veias por onde corre o sangue, no coração que o bombeia, na pele fria que toca energias e que as absorve, alma. Alma, minha triste alma!
Não queria despedaçar-me, fragmentar-me. Olhei-os de cima para baixo e lembrei-me: "Não posso mais olhá-los de cima para baixo! A minha cidade já não é uma cidade de anjos, já não existe espaço para os anjos nas cidades. Os que restaram foram consumidos pelas batas brancas, amarrados pelos pulsos em camas de ferro branco e frio. Não posso olhá-los sem que eles me vejam cair." Chorei. As minhas lágrimas quebraram-se no vazio aflito daqueles olhos: "Joana, tu não tens asas! Joana, tu não sabes voar!"
Era noite. Fazia frio. Chovia. Gritavam: "Não tens asas!"
E eu aqui dentro gritava em silêncio: "Se eu ainda tivesse asas abraçava o Mundo para deixá-lo abraçar-me."
Puxaram-me. Então percebi: Ainda existem anjos nas cidades, anjos de asas invisíveis. E senti, senti a invisibilidade das asas deles tocarem o sítio onde antes existiam as minhas.
Senti a queda. Estou viva.


terça-feira, 23 de março de 2010

P.S.


No mais profundo da minha demência existe mais Razão do que no auge da tua sanidade.

sábado, 20 de março de 2010

Hide inside



People are talking something about a girl
Just one more girl
A girl that have killed herself
She's far away from home

Oh I know what it feels
when you just can't still keep on breathing
when you feel so unreal
when you wake up and think that you’re still dreaming

There's no tears in her eyes
There's no blood running into the night
And I just have one wish:
Oh girl, tell me why?



I still hear people talking,
And I just can't hear them anymore!
Cause they couldn’t see that she feels like a whore,
Just because she doesn't cry and she doesn't scream
Remember that that's not enough for me to want to still be here
"Oh my love, I wanna let you know
There I'm going just because you went
You left me here, alone and cold
I feel nothing in this fucking world"


"No darlings, you won't see my blood
I'm dying, hanging myself
Don't try to understand my causes
Because I know that you'll never think about me in hell!
"I die alone in the bathroom
When everybody's home, in my home
A boy has found me. Oh! "She's not breathing." ( I'm not breathing)
A boy has found me. Oh! "She never used to cry or scream"


You'll never know what real pain is
Coming around the world, like a shadow on the grave


I've dreamed so much
I’ve loved you so much, like you’ve never deserved
You said "nevermind" and I went home
And in that moment I felt like I've been walking alone


All your lies are suffocating me
All your fucking lies are killing me
It feels like your hands are in my throat
And for a moment I feel like you never gone


I wrote this letter, it's about a girl
And it doesn't matter
If I never met her at all

I’ve just heard people talking about a suicide
And I remembered: “I want to die!”

She slowly opened the last door
She slowly closed the last door
She's not crying ... just on the inside
What she felt, she has hidden all these time
All the love’s so far away: no boy, no home, no hope, no escape

Water’s running, she can't even hear the sound
She looks at the mirror and finds herself alone
Look around and see… what did you find?
Something that put an end in her life

An impulsive feeling makes her eyes see
"A way to die quickly and these wouldn’t be so bad"
NO, NO, NO!
I've screamed to you that you haven't got to go
But, oh girl, we never knew

Maybe some times we said "hello"
but I was so blind that I couldn't see your empty soul

When you looked at the mirror I know what you've seen:
"No love, no home, no one to hug me; I'm so sick and tired,
I've got to run away and end my life"

"I feel like no one is missing me here. Maybe I'm wrong
People see me laughing and they think that's real.
Oh they're so blind"

Oh sweet girl they would never mind
that the only thing that's real is the pain inside

I'm gonna tell you a secret, please don't tell it to anyone:
when I feel like I’m dying inside, when I'm feeling so alone
I pick up a knife or a razorblade
I make the razor crawl deep into my arms
and the blood flows, my blood is running away from me
and in that time I'm feel so free
Oh sweet girl, that's our reality

I miss you, I really do
it's so strange…
Oh I feel like I’ve never meet you.
Maybe it's only my sickness talking
but I feel you around when I'm walking!
No fake smiles, no more lies
he said "nevermind" and my sweet girl said "goodbye"

sexta-feira, 5 de março de 2010

Passo a passo




Vi tanta coisa ao longo da vida: cores, ruas, caminhos, sinais, flores, o céu, as montanhas, os sorrisos, as lágrimas, sentimentos difusos e espessos; tive momentos de insónia, momentos de insanidade. Percorri caminhos. Caminhos vazios de tudo, cheios da amargura do nada. Quando olho para dentro de mim, é quase nada o que se aproveita. É nesse momento que procuro olhar para trás. E vejo. Finalmente vejo. Vejo as pegadas que fui deixando ao longo do caminho. Afinal, embora distante, fui parte da construção de tudo aquilo que vi, senti e passei. Estive presente em tudo no passado que me assombra o futuro.




foto by: C.L. \ modelo: Tiago dos Santos
Com os maiores agradecimentos

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Despeço - me



Sim despeço-me.
Por agora é o melhor que faço.
Redescobri que sabe bem melhor escrever apenas para mim.
Sou egoísta nas palavras e nos sentimentos, queria tanta coisa.
Já tive tanta coisa que fui perdendo ao longo da vida (hoje faziam-me falta).
Não estou com paciência nem inspiração para textos 'bonitos'.
A morte vagueia por aí, esteve perto de mim nos últimos dias.
Apesar disso as pessoas continuam a sorrir, riem às gargalhadas e eu olho e penso:
'Serei assim tão diferente?'

Despeço-me.
Pode ser que volte a escrever aqui um dia.
Continuarei a escrever, acho que é daquelas coisas que tenho a certeza que farei para toda a minha vida. Mas guardarei tudo para mim. Afinal de contas, se alguém entende o que escrevo, essa pessoa sou eu.

Na onda da tua indiferença

Abres a porta
entras e não me vês, hora após hora,
volto a ser invisível para ti
como sempre fui e sou mesmo depois do fim!
Rastejo e imploro um pouco da tua atenção!
Não me ouves e as minhas palavras soam-te em vão…
Abate-se sobre mim a melancolia de uma alma penada
Vagueando pelo mundo sem pertencer a nada.
Olhando-te nos olhos quero fazer-te sentir a minha presença
Este esforço que não fazes mata-me como uma doença
Que quebra as fronteiras entre o Reino dos Vivos e o dos Mortos!
Se tu não te vais importar com o meu triste pesadelo então será que eu me importo?
Acendo as velas em tua volta, quero sentir-te mais perto
E logo vens tu apagá-las com o teu sopro traidor, e eu desperto!
Sentindo a corda no pescoço e o mundo cada vez mais sombrio
Sinto que me afundo nessa penumbra onde as memórias ficaram prisioneiras do frio!
Hoje, queres comunicar comigo.
E eu estou longe demais para falar contigo!
Cansei-me de esperar essa tua doce e tão prometida chegada
Percebi que esperar-te não me adiantaria de nada!
Voltei as costas aos sonhos e à esperança
Rasguei-te juntamente com o meu coração e atirei-te para a banheira da lembrança.
Sempre estive aqui caminhando do teu lado
Parece que fui quase sempre invisível ao teu sentido apurado
Agora queres comunicar comigo mas eu sou transparente
Tens de esperar. Atravessar a rua e encontrar-me no cemitério em frente.

Insónia

Espessos sentimentos:
difusos
confusos
É insónia!

Realidade ficcionada
alterada
num plano que não conheço
um sistema ao qual não pertenço
É Insónia!

Desdobramentos mentais
reparações
prozac a correr pelas veias
correntes que prendem sorrisos como teias
É Insónia!

Cristalização de células mortas.
Amor:
desilusão espontaneamente demonstrada
forças do Além que já não dizem nada
É Insónia!

Insónia:
morte cerebral
momento fatal
querer!
morrer!
Dar-te a mão para desaparecer
Era Insónia…

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Returns to me my lost lover

Se eu conseguisse tocar o passado, nem que fosse apenas com a ponta dos meus dedos, , tocar-te-ia. E se eu conseguisse falar ao passado, ele responder-me-ia com a tua voz. Ainda oiço os teus gritos que me rasgavam a carne, ainda te vejo caminhar na minha direcção, ainda te vejo caminhar numa direcção inversa à minha. Cada passo que deste para longe de mim ficou marcado a sangue no caminho, e nem o facto de teres prometido voltar amenizou o peso que se abateu sobre mim. Esperei-te. Estações vieram e foram. Os teus passos marcados a sangue no caminho não se desvaneceram. Nem um sinal. Nada chegava para adormecer a dor. E doía-me o corpo até à alma. Chegaste uma noite ao mundo para onde me transportava enquanto dormia: vi-te olhar o céu com raiva e desespero e vi-te gritar o meu nome com palavras de pedra manchadas de sangue e lágrimas. E a noite abateu-se sobre mim e sobre todos os nossos lugares, os lugares que já não eram nossos porque, tal como eu, já não te podiam ter.
Ficou a recordação vaga, muito vaga e desvanecida da tua presença. Ficou a cicatriz da tua partida gravada no meu peito, o frio do teu corpo privado do meu toque abraçou-me a alma. O sabor do teu sangue na minha boca. E consumi-te com raiva e amor, desejo e aversão: deixaste-me com a ilusão da tua promessa. E o nosso amor só foi eterno sobre a égide da minha memória.





sábado, 16 de janeiro de 2010

O cofre do meu peito aberto

Condundi as palavras e os significados de cada palavra. Por cada sombra, um raio de luz. Escrevi as palavras que me disseste, escrevi cada palavra como se fosse a única. Guardei a folha escrita das tuas palavras no cofre do meu peito aberto, fechei o cofre com o código da sonoridade da tua voz. O cofre ficou fechado, o meu peito manteve-se aberto. No meu peito aberto e escuro ficou o cofre e lá dentro ficou a folha escrita por mim com as palavras que me tinhas dito, que podias ter dito, e eu não queria esquecer. Foram palavras que me disseste enquanto pensava em ti, enquanto te transporatva para perto de mim sem saber sequer onde estavas. Foram palavras que se ouviram no interior do que sou e que fizeram eco no reflexos apagados do que podia ser. As palavras que escrevi mais ninguém podia ter escrito, só eu ouvi as palavras. Só eu senti as palavras. Misturei as palavras e tentei formar uma frase bonita para guardar no cofre. Uma frase bonita que tu me tinhas dito. Uma frase bonita que eu queria que me tivesses dito. As palavras: amo-a, quero, estar, com, ela, se, soubesses, como, ela, é, linda, sinto-me, vivo, perto, dela. E eu a tentar formar a frase bonita que me podias ter dito.
Confundi as palavras e os significados de cada palavra. A frase: Amo-te, quero estar contigo. Se soubesses como és linda... Sinto-me vivo perto de ti! E o meu sorriso ao ler a frase, a frase que criei com as palavras que me disseste. Disseste-me tantas vezes que a amavas, e o meu sorriso a transformar-se em raiva, e ódio, e dor, solidão. Rasguei-te as cordas vocais para abrir o cofre e tirei de lá a folha, queimei com a chama do meu sangue cada palavra, cada linha; adormeci sobre as cinzas da folha e sobre os restos das tuas cordas vocais. Adormeci com o cofre aberto, com o peito aberto e mais escuro, mais frio. Adormeci sem palavras ou frases bonitas ditas por ti, e não fui feliz mas fui real.

Sou tudo aquilo pelo qual não tens de te importar

Disse a mim mesma que não me ia importar. Que não me podia importar. Importar-me implicava muitas coisas, e eu não tinha vontade dessas coisas todas. Não tinhas de me amar sempre, não tinhas de me amar em cada momento. Por mais que eu precisasse de um amor descontrolado e impaciente: eu desesperava por um amor rebelde e irracional, avassalador. Tu não tinhas de me dar esse amor. Eu pensava, tu não tens de me dar esse amor e eu não me vou importar quando não me amares. Disse a mim mesma que não me ia importar, porque para todas as coisas que isso implicava, faltava-me a vontade.
Não me amaste sempre, não me amaste em cada momento. Não me podia importar. E tu não podias importar-te se eu não me importava. Faltou-te saber que me importei. Importei-me pela falta de um amor descontrolado e impaciente: eu desesperava por um amor rebelde e irracional, avassalador, amor que faltou, amor que nunca esteve.
Num dia em que consigas ver além de ti, um dia em que consigas ver além das mentiras escondidas entre as verdades caladas, vais importar-me. Vais procurar-me e eu vou dizer-te, não te importes. Tocas-me a mão e eu digo, não te importes. Tocas-me as lágrimas e eu digo, não te importes. Tocas-me as cicatrizes e eu digo, não te importes. Tocas-me o sangue que pinta o chão e eu digo, não te importes. Eu só digo, não te importes, e tu só dizes, importar-me implica muitas coisas e eu não tenho vontade dessas coisas.


O meu bisavô morreu. Eu nunca chamei bisavô ao meu bisavô, chamava-lhe pelo nome. E ele chamava-me muitos nomes diferentes porque os anos turvaram-lhe a memória do meu nome. Quando conheci o meu bisavô ele já era muito velho e rabugento, mais tarde percebi que ele sempre tinha sido rabugento, e também sempre tinha sido velho. Lembro-me sempre de ver o meu bisavô sentado numa cadeira à porta de casa, e lembro-me de ele não gostar que os meus gatos lhe entrassem em casa. A névoa tinha ocupado os olhos do meu bisavô muito antes do dia em que morreu: todos os dias de sol, em que o céu era azul e sem nuvens o meu bisavô dizia, não se vê nada com este nevoeiro, e mais tarde o meu bisavô passou a dizer que todos os dias fazia nevoeiro e que o tempo já não era como antes. O tempo já não era o tempo dele. O meu bisavô chamava a minha avó todas as manhãs e zangava-se quando ela demorava. Às vezes penso que o meu bisavô nunca pensou em mim. Não me lembro da felicidade do meu bisavô, não me lembro do amor dentro do meu bisavô. Quando me lembro dele só o vejo sentado na cadeira à porta de casa, e a zangar-se com os gatos e com a minha avó. E lembro-me que os dias do meu bisavô eram sempre cheios de nevoeiro.
O meu bisavô morreu e eu não chorei. O meu bisavô morreu e eu não fui ao funeral. Foi muita gente ao funeral do meu bisavô, gente que não era prima, neta, filha ou irmã do meu bisavô. Mas eu não fui. Não chorei quando o meu bisavô morreu. Às vezes penso que devia ter chorado pelo meu bisavô mas depois também penso que o meu bisavô nunca pensou em mim. O meu bisavô nem sabia o meu nome, e quando me chamava, chamava-me muitos nomes diferentes e nunca acertava no meu.
Quando passo pela casa onde morava o meu bisavô e onde ele era mau e rabugento ainda o vejo lá, ele está sentado numa cadeira à porta de casa, e os olhos dele estão muito longe, perdidos no tempo que a vida já lhe roubou. Mas a verdade é que ele não pode lá estar, porque a casa do meu bisavô agora está cheia de coisas inúteis: caixas, caixotes, caixas mais pequenas com coisas avariadas, caixas médias com relógios partidos, malas de viagem que estão aprisionadas na casa do meu bisavô.
O meu bisavô adormeceu uma noite, e nessa noite adormeceu para sempre. De manhã ele não gritou, Maria, que é o nome da minha avó, ele nunca mais gritou, Maria. O meu bisavô, pouco antes de morrer, dizia muitas coisas sem sentido, e eu ria-me.
Eu podia ter chorado pelo meu bisavô, podia ter ido ao funeral do meu bisavô, podia ter-me importado mais com a morte do meu bisavô. Afinal ele era meu bisavô e eu nunca lhe chamava bisavô, chamava-lhe, Tio Domingos. Domingos era o nome do meu bisavô, e tio era o que toda a gente lhe chamava.
O meu bisavô morreu há dois anos e eu não chorei, mas ainda me rio das coisas sem sentido que o meu bisavô dizia.

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

Tempo

São pedaços de tempo que se rasgam diante de mim. Fragmentos de um tempo que ficou parado no relógio daquela sala vazia. Mesmo quando penso que o meu tempo me foge, ou que se atrasa, engano-me: o meu tempo ficou parado. Tudo o que vivo; vivo tudo sem tempo. Vivo no tempo da gente alheia. Caminho no meio da gente que desconheço e roubo-lhes o tempo que não têm para mim. Em silêncio sussurro: dá corda ao relógio do meu tempo. E enquanto o sussurro não se espalha através de um eco mudo fico aqui sentada só para não vos roubar mais tempo.


Florbela Espanca


O meu mundo não é como o dos outros, quero demais, exijo demais;

há em mim uma sede de infinito, uma angústia constante que eu nem mesma compreendo, pois estou longe de ser uma pessoa; sou antes uma exaltada, com uma alma intensa, violenta, atormentada, uma alma que não se sente bem onde está, que tem saudade… sei lá de quê!


Florbela Espanca

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Respirei fundo na tentativa desesperada de me desprender de mim. Pedaços de mim rodopiavam em torno do meu corpo numa queda fatal contra o tempo que não havia. Contra um tempo que já não havia. Respirei fundo elevando o meu olhar pálido e cego contra os céus. Lembro-me bem de ter respirado fundo e lembro-me do céu, da cor do céu, quase tão pálido e cego como os meus olhos que o subornavam em preces caladas.
Caída sobre as escadas frias e pesadas daquele sítio que não conhecia vi-te. Eu vi-te dentro de mim, numa construção de perfeição que não conhecia. Construí-te. Cada gesto teu, cada traço meigo e rude, cada acto cruel e inocente. Criei-te sobre a bipolaridade dos meus comportamentos. Transformei-te: quando trocava palavras sem significado com as estrelas, ou nas vezes em que os meus pés descalços pisaram as arestas de fogo da chama apagada, transformei-te. A ilusão de ter dentro de mim, criado em perfeição, numa perfeição que era a minha medida, fazia-me sentir completa. Vi-te crescer, crescer em vida e em realidade, sem nunca teres saído de dentro de mim; vi-te percorrer distâncias e conhecer coisas, vi-te escolher vozes e palavras, vi-te alterar significados e verdades, nunca precisaste de sair de dentro de mim.
Viste-me chorar e abraçaste-me de dentro para fora. Nas vezes em que gritei tu abafaste os sons dolorosos das minhas cordas vocais, e seguraste-me quando caí desamparada depois de ter engolido compulsivamente as cores e as letras e os componentes e as indicações dos comprimidos. Não me disseste, pára, e não me disseste, chega. Nunca me disseste, estou farto, ou vou-me embora. Nunca gritaste, desaparece, ou esquece que existo. Sempre á mesma hora e no mesmo tom de verdade disseste, amor, ou amor.
As noites que passava sozinha só na tua companhia sabiam-me a ti, e a lua, e a pétalas de rosa, e a mel. Sabiam-me às coisas boas que tu me sabias.
E depois veio a manhã em que acordei e te vi fora de mim. Eras tu a atravessar a minha boca, os meus olhos, cada poro da minha pele, eras tu que tinhas atravessado o teu corpo por cada raiz do meu cabelo. E estavas agora fora de mim. Olhei-te com olhos assustados e falei-te com lábios de pânico, como? porquê? As janelas abanavam, a porta abria e fechava, os raios caiam em cima de mim e iluminavam-me, via-se um buraco dentro de mim, um vazio que cheirava a solidão, onde antes havias tu agora havia a tua falta. Olhei á minha volta: paredes pintadas de sujidade, lama pegajosa que escorria e queimava o chão de madeira. O fogo alastrava-se na casa. Formou um círculo. Dentro do círculo: eu sem ti, a cama e tu. E perguntei outra vez: como? porquê? Sabia que estava na hora, era a mesma hora e o mesmo tom de verdade, e tu não dizias amor, ou amor. Apertaste-me o braço como se quisesses que os teus dedos se espetassem nele até perfurar o osso, empurraste-me para o chão. A cama ardeu. No círculo: eu sem ti, e tu. As minhas lágrimas soltaram-se apressadas por morrer aos teus pés, e a minha voz muda procurava palavras para te dizer. Então olhaste-me com desprezo e aversão, perguntaste-me como tinha sido capaz e eu, sem perceber, perguntei do que falavas, disseste que te tinha escondido tantas verdades e que não me podias perdoar, eu perguntei-te que verdades, e tu respondeste, eu amava-te porque vivia dentro de ti, eras única porque estava dentro de ti, dizia-te amor, ou amor porque estava dentro de ti, amei-te tanto enquanto estive dentro de ti, mas tu, tu falsa e egoísta, tu fraca e impiedosa, tu nunca me disseste que podia estar dentro de qualquer mulher. Voltou costas. Abriu a porta e foi embora. Debaixo de mim abriu-se um abismo, vi-me cair aos poucos, e depois de repente. O abismo fechou-se.
E ele nunca percebeu que me levou, levou-me dentro dele porque ele era o único que eu amava ao ponto de lá querer estar para sempre.

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

Se me olhasses por dentro

Se me olhasses por dentro ias encontrar-te lá , a consumir-me de luz e escuridão. A ausência de ti arde-me no corpo como o fogo do passado. De todas as vezes que te encontrei, depois de teres partido não te consegui agarrar e mataste-me como me matas agora, e por isso não preciso de me matar.
Conforta-me saber que és tu quem me rouba da vida, tu que me roubaste da morte naquela batalha em que só tu eras guerreiro. Ainda te vejo a olhar-me coberta do sangue das tuas feridas que o meu amor por ti não chegou para sarar. Chorei-te. Sei que sabes que te choro ainda, e as lágrimas são em vão. Mas quero continuar a sentir a tua falta até que essa falta deixe de fazer sentido por voltares a desejar que te pertença mesmo que não queiras e não possas estar comigo. É o destino. Pertencer-te é o meu destino. O destino simples que falta cumprir-se.