Ego

A minha foto
Pisei todos os caminhos, incluindo aqueles que estavam cobertos de Trevas. Evitei voar sobre eles mesmo na certeza de que o Sol brilhava mais acima daquele lugar. Toquei-me de Trevas e, já sem asas, ausentei-me do Sol.

quinta-feira, 1 de abril de 2010

Tempo.
Quero mais tempo. Precisava de mais tempo, queria ter o tempo que não tenho para voltar atrás. Queria rebobinar a minha vida até ao momento em que, pela primeira vez, fiz alguém sofrer, porque foi a partir desse momento que percebi que dói mais saber que magoei do que quando me magoam.
Dou passos lentos por aquelas ruas estreitas da minha Vila, daquilo que um dia foi uma coisa totalmente diferente. As ruas são as mesmas, as pedras das calçadas são aquelas que já pisara antes, antes do tempo de hoje. As paredes que me olham ainda estão de pé. O rio. O mar. Está tudo no mesmo lugar, tudo pertence ao mesmo espaço, nada se alterou.
Fui eu que mudei. Fui eu quem alterou o significado das coisas, o tempo deu-me tempo para isso. Não sei se era isso que queria, às vezes ainda desejava sentir tudo como sentia antes; outras vezes não, outras vezes olho para tudo e penso que o facto de sentir algo diferente quando os meus olhos vêem as mesmas coisas que viram durante anos, há alguns anos, indica que dentro de mim, no espaço em mim onde tudo estava desconcertado e confuso, onde a obsessão e o sangue se entrelaçavam pelo meu corpo e onde o veneno me consumia lentamente com o objectivo de me fazer sentir bem o sabor amargo da minha morte, houve uma mudança. Levaram-me a uma oficina onde concertaram o que estava desconcertado, puseram no sítio certo cada peça de mim. Fui, parcialmente, reconstruída.
O tempo.
O tempo que já passou depois do momento em que, pela primeira vez, fiz alguém sofrer por mim, já ficou por lá, longe demais para que eu consiga, ainda, agarrá-lo. Quero sofrer pelos momentos em que no tempo deste tempo perdido, fiz alguém sofrer. Quero a dor dos outros nas gavetas da minha dor. Todas as dores a preencherem um vazio que fica cada vez mais vazio.
Vejo os sorrisos: falsos, hipócritas, invejosos, destrutivos, ameaçadores. Vejo as lágrimas: límpidas, puras, sangue da alma que nasce nos pulsos. Prefiro as lágrimas aos sorrisos, excepto se for o sorriso de uma criança. Amontoem sobre mim os sorrisos das crianças, a vida dentro das crianças que é ainda a verdadeira vida, seres humanos, sensibilidade e verdade.
Quando voltar a passar pelas ruas estreitas, pelas pedras da calçada, pelas paredes que ainda estão de pé eu vou ser duas, ou três, ou quatro, ou sei lá quantas vou ser! Vou ser uma para cada momento, vou agarrar cada momento que caminha até mim com a forma de uma folha branca manchada de uma tinta preta, porque alguém, ao levantar-se da mesa derrubou o frasco de tinta preta sobre a folha e nunca mais voltou para limpar a tinta que pingava o chão e que escurecia o chão. E para agarrar cada momento tenho de ser muitas, tenho de ser muitas para colocar em cada uma de mim um momento diferente: alegrias separadas de tristezas, amor separado de ódio, gritos separados do silêncio, lâminas separadas dos pulsos, as palavras cruéis separadas do abraço que ainda sinto por ter perdido.
Não vou ser muitas. Não vou ser duas, ou três, ou quatro, ou sei lá quantas! Vou ser uma só, uma só a ser amarrada aos momentos, a ser agredida pelos momentos, a ser amada pelos momentos, a ser a que grita e chora e que tenta lavar o sangue das feridas abertas, a que abraça e é abraçada como se não houvesse mais nada e mais ninguém, vou ser só uma, vou ser só eu.
Sentada sobre o último momento de que me recordo, olho-me por dentro: sensibilidade, tristeza, vazio, loucura, amor, vozes, querer, querer muito, cuidar, proteger, dar-me sem querer receber nada em troca, nada. Olho-me por fora: cicatrizes. Existe uma lágrima a fugir de mim, a minha alma sangra, sinto-me tão longe e não sei onde estou, sinto falta, uma falta que não tem origem, não sei o que me falta. Oiço o riso, gargalhadas, pés que correm. Vejo, é uma criança que corre sozinha no meio de flores de todas as cores, uma criança que ri e que dá gargalhadas só porque as borboletas e os pássaros fazem voos magníficos sobre ela, deita-se no meio das flores e conta as nuvens, e ri das figuras que encontra nas nuvens, bate palmas e pula de alegria porque o gatinho perdido encontrou a mãe.
A criança vê-me, aproxima-se, toca-me, oferece-me uma flor e sorri. Eu pergunto: como te chamas meu amor, ela hesita, mas acaba por responder, chamo-me Joana e tu?

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