Existe terra solta debaixo dos meus pés, e debaixo da terra solta já não existe mais nada. Um monte de terra acumula-se à minha frente, é terra solta que tapa o calor da alma, de uma alma que já não pertence à terra que a cobre. E em tudo o que vejo encontro pequenos montes de terra solta, não consigo fugir-lhe. Fugir-lhe era pedir muito, e eu tenho tão pouco tempo para pedir seja o que for. Enquanto os observo caem gotas de dor vindas do céu pálido e triste, é Inverno, é Inverno dentro de mim, dentro de nós. Será sempre Inverno?
Quero saber o que escondes de mim, terra solta! Confessa-te e eu deixo que vás para sempre, diz-me só aquilo que procuro incessantemente, sem encontrar. Estou aqui, será que me vês? Ainda pergunto coisas sem sentido, coisas que ninguém mais pergunta, porque mais ninguém corre atrás de vazios, não há ninguém que mergulhe em poços secos só para sentir a profundidade do poço. Eu mergulho, mergulho sempre. E sinto a profundidade do poço, não me assusta. É tão pequena comparada com a profundidade do ser que já não sou. Estou no fundo do poço e mesmo aqui vejo terra solta, sinto o cheiro da terra solta. Ainda existem as marcas de água no poço vazio, como ainda existem as tuas marcas nos lugares onde já não estás, onde nunca mais vais estar e onde eu vou continuar a ver-te.
Corre! Corre! Chamam o teu nome e sabes que tens de correr. Não te deixes ficar para trás, não te guardes para ti, não guardes dentro de ti o tamanho todo do Inverno, não vais conseguir, não há quem consiga. Anda. Não tenhas medo. Sei que sentes ainda. Sei que vês ainda coisas que os vivos não conseguem ver, tu vês e não vives mais, porém viverás sempre nos espaços, nos gestos, nos sorrisos, no teu sorriso que nenhuma terra solta é capaz de apagar.
Ouves? Tenho de te perguntar! Ouves? Sei que sim, quando mais ninguém me ouvir, tu vais ouvir sempre. Como eu hei-de ouvir-te sempre, mesmo quando não falas, quando o teu silêncio magoa mais do que os gritos e o choro que calas-te dentro de ti até ao fim. Fim. Fim. Costumo dizer que o fim não existe, sim o fim não existe. Quando pensas ter chegado ao fim, já sem espelho, sem músicas tristes, sem ensaios de inutilidade, o fim esmorece, ganha tamanho, e continuas, com espelhos e reflexos, com os tons tristes dessas melodias, com a inutilidade de todas as coisas inúteis. Imagina um círculo, agora imagina-te a caminhar sobre a linha que o delimita, isso é o fim, o fim é essa linha sobre a qual caminhas, caminhaste sempre. Hoje ainda caminhas, e hoje à semelhança do que acontecia antes, também ninguém te vê com os pés sobre a linha, com os pés sobre a terra solta.
Falta pouco, podia faltar tanto. Não conheço o caminho da distância até aí. Mas nesse caminho de luz ausente, que se faz daqui até aí, foste deixando ecos do sorriso mentiroso que disse verdade a tanta gente. Sinto. Oiço. Vejo. Silêncio, mais silêncio. Existe um mundo inteiro para abraçar, não existem braços suficientes: os braços estão caídos sobre o corpo, os braços estão amarrados com tempo, os braços estão gelados e esquecidos dentro de baús de solidão. Abraça-me, abraço-te. Os meus braços estão soltos, também estavam os teus. Eram os nossos braços soltos, e agora apenas os meus. Vê-me aqui, quem sou eu? Quem eras tu? Perguntas sem resposta, respostas que não o sabem ser, e que por isso não deviam existir. E eu, que também não sei ser, continuo a existir. Tu, não soubeste ser, ainda assim existes em tudo o que foste. Páro. Olho. Ainda, ainda.
Deixa-te estar, aí nesse pedacinho de lugar. Que eu estou aqui sem lugar onde ficar. Amanhã é um dia diferente. As crises pairam por aí, rio-me delas, elas riem-se de mim. Rimo-nos uma para a outra. Ri-te também! Sabemos bem que existe terra solta suficiente para as duas e por isso não nos importamos, nem eu, nem a crise. Ela pode vir habitar-me e enquanto isso terá de me aturar, aturamo-nos. Conheço-a. Trato-a por “tu”. Digo-lhe, hoje não, hoje está tudo tão maravilhoso aqui. E fica a terra solta que ainda não é um monte de terra solta a tapar o calor da alma, de uma alma que já não pertence à terra que a cobre. Fica a terra solta a ver o Inverno passar pelo meio de nós, dentro de nós. Caminho, caminhaste sobre a linha, algures encontrarei, encontraste terra solta que cobrirá, cobriu com calor o Inverno dentro de mim, dentro de ti.