Ego

A minha foto
Pisei todos os caminhos, incluindo aqueles que estavam cobertos de Trevas. Evitei voar sobre eles mesmo na certeza de que o Sol brilhava mais acima daquele lugar. Toquei-me de Trevas e, já sem asas, ausentei-me do Sol.

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Terra Solta

Existe terra solta debaixo dos meus pés, e debaixo da terra solta já não existe mais nada. Um monte de terra acumula-se à minha frente, é terra solta que tapa o calor da alma, de uma alma que já não pertence à terra que a cobre. E em tudo o que vejo encontro pequenos montes de terra solta, não consigo fugir-lhe. Fugir-lhe era pedir muito, e eu tenho tão pouco tempo para pedir seja o que for. Enquanto os observo caem gotas de dor vindas do céu pálido e triste, é Inverno, é Inverno dentro de mim, dentro de nós. Será sempre Inverno?

Quero saber o que escondes de mim, terra solta! Confessa-te e eu deixo que vás para sempre, diz-me só aquilo que procuro incessantemente, sem encontrar. Estou aqui, será que me vês? Ainda pergunto coisas sem sentido, coisas que ninguém mais pergunta, porque mais ninguém corre atrás de vazios, não há ninguém que mergulhe em poços secos só para sentir a profundidade do poço. Eu mergulho, mergulho sempre. E sinto a profundidade do poço, não me assusta. É tão pequena comparada com a profundidade do ser que já não sou. Estou no fundo do poço e mesmo aqui vejo terra solta, sinto o cheiro da terra solta. Ainda existem as marcas de água no poço vazio, como ainda existem as tuas marcas nos lugares onde já não estás, onde nunca mais vais estar e onde eu vou continuar a ver-te.

Corre! Corre! Chamam o teu nome e sabes que tens de correr. Não te deixes ficar para trás, não te guardes para ti, não guardes dentro de ti o tamanho todo do Inverno, não vais conseguir, não há quem consiga. Anda. Não tenhas medo. Sei que sentes ainda. Sei que vês ainda coisas que os vivos não conseguem ver, tu vês e não vives mais, porém viverás sempre nos espaços, nos gestos, nos sorrisos, no teu sorriso que nenhuma terra solta é capaz de apagar.

Ouves? Tenho de te perguntar! Ouves? Sei que sim, quando mais ninguém me ouvir, tu vais ouvir sempre. Como eu hei-de ouvir-te sempre, mesmo quando não falas, quando o teu silêncio magoa mais do que os gritos e o choro que calas-te dentro de ti até ao fim. Fim. Fim. Costumo dizer que o fim não existe, sim o fim não existe. Quando pensas ter chegado ao fim, já sem espelho, sem músicas tristes, sem ensaios de inutilidade, o fim esmorece, ganha tamanho, e continuas, com espelhos e reflexos, com os tons tristes dessas melodias, com a inutilidade de todas as coisas inúteis. Imagina um círculo, agora imagina-te a caminhar sobre a linha que o delimita, isso é o fim, o fim é essa linha sobre a qual caminhas, caminhaste sempre. Hoje ainda caminhas, e hoje à semelhança do que acontecia antes, também ninguém te vê com os pés sobre a linha, com os pés sobre a terra solta.

Falta pouco, podia faltar tanto. Não conheço o caminho da distância até aí. Mas nesse caminho de luz ausente, que se faz daqui até aí, foste deixando ecos do sorriso mentiroso que disse verdade a tanta gente. Sinto. Oiço. Vejo. Silêncio, mais silêncio. Existe um mundo inteiro para abraçar, não existem braços suficientes: os braços estão caídos sobre o corpo, os braços estão amarrados com tempo, os braços estão gelados e esquecidos dentro de baús de solidão. Abraça-me, abraço-te. Os meus braços estão soltos, também estavam os teus. Eram os nossos braços soltos, e agora apenas os meus. Vê-me aqui, quem sou eu? Quem eras tu? Perguntas sem resposta, respostas que não o sabem ser, e que por isso não deviam existir. E eu, que também não sei ser, continuo a existir. Tu, não soubeste ser, ainda assim existes em tudo o que foste. Páro. Olho. Ainda, ainda.

Deixa-te estar, aí nesse pedacinho de lugar. Que eu estou aqui sem lugar onde ficar. Amanhã é um dia diferente. As crises pairam por aí, rio-me delas, elas riem-se de mim. Rimo-nos uma para a outra. Ri-te também! Sabemos bem que existe terra solta suficiente para as duas e por isso não nos importamos, nem eu, nem a crise. Ela pode vir habitar-me e enquanto isso terá de me aturar, aturamo-nos. Conheço-a. Trato-a por “tu”. Digo-lhe, hoje não, hoje está tudo tão maravilhoso aqui. E fica a terra solta que ainda não é um monte de terra solta a tapar o calor da alma, de uma alma que já não pertence à terra que a cobre. Fica a terra solta a ver o Inverno passar pelo meio de nós, dentro de nós. Caminho, caminhaste sobre a linha, algures encontrarei, encontraste terra solta que cobrirá, cobriu com calor o Inverno dentro de mim, dentro de ti.






sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Dez minutos

Hoje vi-te. Estavas ali mesmo à minha frente. Dentro da minha cabeça uma voz perguntou-me se serias mesmo tu, os meus olhos responderam que sim. Podia ter-te chamado, não chamei. Fiquei só a ver-te como se te visse realmente. As pessoas passeavam-se pela rua, os passos apressavam-se numa viagem que eu desconhecia. Para que queria eu saber daquelas viagens, sempre tão distantes da minha? Mas tu estavas ali e eu podia ter-me apressado a ir ter contigo, não fui. Olhei discretamente, olhei-te para te reconhecer nos gestos que fazias. Durante dez longos minutos fiquei parada a lembrar-me de como eras, e pensei que já não podias ser assim.
Hoje sei que te vi e talvez mais ninguém te tenha visto. Os dez minutos que se seguiram ao momento em que os meus olhos se cruzaram com a tua presença foram tão longos, tão distantes, foram dez minutos que levaram mais de dez minutos a passar. Não me viste, ainda bem. Não queria que me visses ali, depois de tudo o que não fiz por ti, não queria que dissesses que não podia ter feito nada. Na minha cabeça a voz perguntava sempre se serias mesmo tu, os meus olhos responderam sempre que sim. O meu coração não sabia o que responder e por isso mantinha-se ali sossegado, carregado de pessoas que não eram como tu, não eras tu.

Hoje pensei que te tinha visto, e eu nunca te tinha visto antes. Pensei, e se não fosses tu? Nesse momento podia ter-me arrependido de não ter ido ter contigo para te perguntar se eras tu a pessoa que eu via, tão perdida e sozinha como nunca tinhas estado... não me arrependi. Se fosses mesmo tu não queria que me dissesses que eu não podia ter feito nada.

Depois dos dez minutos, agora eternos na minha memória, vi-te ir embora outra vez, e eu nunca te tinha visto ir embora assim.
Quando foste, na outra vez, não te vi partir, quando soube já tinhas ido e eu não pude fazer nada. Desta vez vi-te caminhar sem direcção nenhuma, com passos frágeis e cansados de quem está cansada demais para continuar. E senti o frio, a dor, as lágrimas, a viagem. Quando foste, olhei e não te vi. Uma voz na minha cabeça perguntava se serias mesmo tu, os meus olhos encheram-se de lágrimas e calaram a dúvida, o meu coração escondeu-se para não ter de responder. Então a voz na minha cabeça adormeceu. Voltei as costas e pensei, que se fosses tu, aquela era a primeira vez que te via.

Vi-te, depois do tempo todo em que exististe sem que eu te visse, depois do tempo em que deixaste de existir para que eu te pudesse ver.

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Rouba-me de Fevereiro

Rouba-me Fevereiro. Rouba-me daqueles dias como se me roubasses de um fim tão certo. Preciso que me afastes das semanas daquele mês, afasta-me! Mas não me perguntes porquê, vou responder-te sempre que não sei, e na verdade eu não sei mesmo. Mesmo que soubesse iria responder-te na mesma que não, que não sei... que não sei que Fevereiro magoa e corta, afoga e sufoca, eu não sei que Fevereiro é tão triste e tão escuro como quando a noite se abatia sobre mim levando-me de novo para o caminho inseguro, vazio, pesado do meu pensamento.
Um dia pensei que Fevereiro era um mês igual aos outros, depois percebi que não. Fevereiro é diferente: cansa, rasga, arde. É tão pequeno e ao mesmo uma imensidão, pode ser uma eternidade. Sabes a língua dos meses? Deixa-me falar com Fevereiro. Tenho de dizer-lhe que o conheço tão bem, que nunca vou conseguir esquecer ou perdoar.
Rouba-me de Fevereiro, e das semanas que se seguem. Deixa-me ficar só contigo, sem tempo, sem as horas que passam como se também elas fugissem de Fevereiro. E se alguém te perguntar porque me roubas-te do segundo mês do ano diz-lhes que não sabes, e na verdade não sabes mesmo, mas se soubesses sei que continuarias a dizer que não, que não sabes que Fevereiro me acordou bruscamente para me contar uma história tão triste, que não sabes que Fevereiro me fez sentir sozinha e perdida, que me fez vaguear sem direcção à procura da resposta que não chega nunca. Fevereiro, os teus dias são solidão, são a ferida aberta que nunca cicatriza.
Se puderes leva-me para longe de Fevereiro, e eu nunca mais vou chorar pela solidão dos seus dias.

terça-feira, 3 de agosto de 2010

Pesadelo

Disseram-me: ele é um pesadelo. E eu na inocência do pesadelo da vida, acreditei! Quando olhava nos olhos do pesadelo havia uma chama de raiva nos seus olhos que eu via arder por detrás do silêncio da língua dele. Fechava os olhos para não ver a chama e assim já não sentia a raiva do pesadelo que me cobria o corpo.
Um dia disseram-me: ele é um pesadelo. E eu, na inocência do pesadelo do mundo, acreditei. Quando olhava nos olhos do pesadelo via coisas que não se podiam ver, coisas que não sorriam para mim, e eu sorria para elas. Sorria para não sentir o frio do sorriso fechado dessas coisas a cobrir-me o corpo.
Um dia disseram-me: ele é um pesadelo. E eu, na inocência perdida do pesadelo que era o pesadelo dele, não acreditei. Olhei-o nos olhos e vi verdades de ódio e morte, verdades de luz e cores que eu não conhecia, vi as verdades que se escondiam debaixo das cicatrizes que não eram as minhas. E as coisas que o habitavam, aquelas que não sorriam, continuaram sem sorrir mas eu sorri. O meu sorriso agarrou as verdades e as coisas, trancou tudo dentro de mim...
Um dia disseram-lhe: ela é um pesadelo. Ele, na minha inocência perdida, na inocência de quem já foi pesadelo, não acreditou. Agarrou-me pelas mãos ensanguentadas, beijou-me os lábios mortos pelo veneno e levou-me para onde os pesadelos não importam.

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Deixou o resto à tua guarda

Diz-me o que ficou por dizer, a tristeza que refugiaste de silêncio e o mundo inteiro que calaste dentro do teu pequeno espelho. Mostra-me o que escondeste no teu grande, enorme peito, tudo aquilo que fechaste nas mãos suadas de medo.
Deixa-me entrar para lá da porta que trancaste, a porta trancada da vida que esqueceste do outro lado, no meio do Oceano. Não tenhas medo! O lago espera por ti, quer acalmar a corrente forte que te puxa, que te prende o ar. Escreve o lago em inglês, porque em inglês é tudo sempre mais igual. Sorri! E guarda-me lá um espaço, um espacinho nas luzes que levaste e não quiseste dizer... Não te censuro, uma luz é algo tão precioso, e se eu fosse a ti teria feito o mesmo, se ao menos eu fosse como tu. Mas não sou, e serei cada vez menos, porque o tempo passa e distancia-me do momento onde ficaste, e eu vou continuando até que um momento fique comigo. Às vezes queria ser, queria saber de ti, do coração que bate, do coração que parou tão perto. Do lugar onde estou se tivesses gritado eu podia ter-te ouvido, e se ouvisse... nada me garante que terias ficado.
No meio do oceano, é tão grande o Oceano. Vejo-te e estás longe de ti, longe do lugar. Se eu soubesse onde moras podia ter-te levado a casa, mas eu não sabia, ainda não sei, e hoje é tarde para bateres à porta, embora ainda haja quem espere ver-te chegar mesmo sabendo que não chegas nunca.
Chegaste: a nave central é a casa, na igreja onde moras, se eu soubesse que lá estavas talvez tivesse ido, ou não.
Sempre Com Tanto Tempo. Dá-me tempo, pára o meu tempo. Dá-te mais tempo, podias ter-me dado tempo para parar o tempo daquele momento. Olha-me aqui a procurar restos de ti no infinito da tua identidade, eu não sei nada e o que sei não me chega. Tudo o que ficou por dizer na conclusão inacabada arde no lugar onde a porta permanece fechada, como se ainda estivesses lá dentro. A torneira que deixa a água pingar lentamente, é como a chuva que cai lá fora e que tu não ouves porque tudo o que querias ouvir está no meio do oceano onde hoje navegas à deriva. Levaste contigo tanto tempo, mas foi tão pouco o tempo que levaste comparado como que deixaste, levaste o mês e os dias daquele mês e embrulhada neles levaste a chave da porta que fechou na eternidade o teu sorriso.


sábado, 3 de julho de 2010

Estou viva. deixa-me pensar

Procuro as palavras. As palavras certas. As palavras que conseguem dar voz aos meus pensamentos calados. Agarro no dicionário da minha memória, nas gavetas vazias da minha mente, tenho de encontrar o que procuro. No meio daquela confusão imensa: ideias, visões, pensamentos breves e superficiais que se encaixam num único pensamento profundo e eterno; vazios, um poço seco que anseia por um água que nunca teve, uma dor que carrega em si tantas outras, espaços amplos onde cabe tanta gente sem que lá se encontre alguém. Vejo o muro, a corrente, a ponte. Em cada lugar procuro as palavras. Em cada momento procuro as palavras certas. Perdi-as, é isso que penso. Mas o que penso é um mundo, e um mundo é tanta coisa que não se pode calar, ou guardar em pensamentos mudos, pensamentos que se fecham por dentro sem nunca entender a falta que fazem cá fora. Tatuei-me de dor. Penso, e pensar não me chega para encontrar as palavras certas. Olho-me por dentro, tantas palavras, a tinta de uma caneta avança sobre o sangue nas minhas veias, desejo ou vontade. Penso, e o que penso fecha-se em mim. Os pensamentos são correntes que se arrastam pelas minhas cordas vocais, fico muda. Preciso de encontrar as palavras certas. Avanço, não quero ser vista, sinto-me transparente. Não me vejas, não me magoes, não encontres os meus pensamentos... frágeis e melancólicos pensamentos! Por favor, deixa-me esconder, deixa-me ficar abraçada aos meus medos enquanto procuro as palavras que nunca serão a minha voz. Estou aqui, entre quatro paredes brancas, uma pequena luz ilumina as paredes, existe tinta na caneta que a minha mão guarda. Os meus olhos procuram nas paredes as palavras que não encontram, e esses palavras ausentes fazem-me tanta falta.
Na ausência das palavras sinto com intensidade dupla, sinto calada porque assim sinto mais. Queria escrever as palavras certas, mas faltam-me essas palavras; falta-me, por vezes, o verdadeiro significado do “certo”. Tenho uma missão impossível, encontrar o que desconheço, algo que nem sei por onde anda. Vejo o muro, a corrente, a ponte. E vejo as palavras que se transportam de uns para os outros, de uns para o nada. Penso e escrevo, descrevo o que penso sem pensar nas palavras, porque os pensamentos traduzidos pelas palavras certas não podem ser os meus pensamentos.
Pensa, existo; sou porque vivo, e vivo porque penso. Estou viva, deixa-me pensar.

domingo, 23 de maio de 2010

Mutilação

Chega muda e transparente. Ninguém adivinha que se aproxima de forma inevitável. É um monstro que como um vento forte arrasa tudo á sua passagem. Arrefece os corpos e rouba as almas, deixa ficar o vazio e o peso da ausência. Ignora o choro, as palavras, os pedidos em desespero. Sempre insensível e surda. Arranca da terra as raízes da vida, atrás destas vão partes de outras raízes, mutiladas para sempre. Na memória que fica quando parte, depois de ter parado o sangue num corpo qualquer, há-de ouvir-se sempre o eco do choro, o sabor amargo da derrota.

O rasto que fica é negro, desfocado e quase assassino. Tudo o que sobra é memória, e a memória é tão pouco. A saudade de uma presença que já não se sente, que nunca mais se sente, e uma vontade de dizer palavras que terão de permanecer caladas para sempre só porque já não existe quem tinha de as ouvir.

...Mutilada para sempre pela tua ausência.