Sabes de mim? Um dia perdi-me num nevoeiro que passava pela porta de minha casa, nunca mais me encontrei. O meu corpo no meio do nevoeiro foi levado pelos meus pés que caminhavam sozinhos. Não sei para onde me levaram os pés, para onde me levou o nevoeiro. Agarrei-me às mãos de um desconhecido que passava, um desconhecido que me olhava e que me via sem saber que o que via já não era eu. Não podia ser eu, não era eu aquela que os pés guiavam numa direcção sem direcção nenhuma, não era eu aquela que o nevoeiro envolvia e arrastava sem pedir permissão, não era eu que as mãos daquele desconhecido agarravam e puxavam tentando fazer-me regressar para onde nunca estive. Mas o desconhecido e as mãos do desconhecido não tiveram força para me roubar daquela mancha espessa de névoa, a força dele não lhe bastou, e eu já tinha dado toda a força que algum dia exitira em mim. Gastei a força que nunca tive a fazer de mim degraus de uma escada para os ajudar a subir. A escada que eu fui foi-se desfastando com o tempo, foram subindo sem que vissem que me fragilizava, ninguém reparou que na escada de mim havia noite e frio, haviam passos ásperos e pesados que enegreciam o meu espírito.
No caminho que os meus pés construíram vi tanta dor, dores que estavam fora de mim e que eu puxei e aprisionei no meu pequeno mundo, varri dos caminhos as dores que voavam perdidas, empurradas pelo vento. Poluíam a vida e eu não podia deixar. Guardei todo o lixo que eram aquelas dores, guardei todo o lixo e o lixo preencheu-me de nada. As mãos dele podiam proteger-me, mas só se ele soubesse e sentisse e visse como eu.
Cheguei a um sítio qualquer, cheguei a um sítio qualquer onde estava ainda mais perdida de mim do que de ti. Era tudo tão branco, caíam penas de anjo do céu, penas de anjos e de corvos misturavam-se e matavam-se em quedas rápidas. Quantas me tocaram a pele antes de se matarem mesmo à frente do meus olhos. Agarrei as penas todas, todas as penas que consegui agarrar e guardei-as no cofre do meu destino. Guardei as penas que salvei da morte predestinada. Deitei-me no chão frio e senti o frio do chão mistirar-se com o meu corpo frio e ausente. Fechei os olhos com força e tentei ver se conseguia descobrir-me no escuro que se abria por detrás dos meus olhos fechados. Uma mão tocava-me o cabelo, uma mão tocava-me o rosto, uma mão tocava-me os lábios. Uma mão de luz abraçou-me a escuridão. Abri os olhos e não vi a mão, não vi de quem era a mão. Olhei o céu coberto de tristes sinas, tristes almas habitavam aquele céu. Senti-me flutuar, os meus pés deixaram de tocar o chão. Os ramos secos das árvores mortas levantavam-me do chão e colocavam-me mais perto das almas tristes que deambulavam ao longe, almas tristes acompanhadas por cânticos negros. Vi-me no meio daqueles tristes espectros despedaçados, sem destino, sem salvação. Restava tão pouco de vida no meu sangue, restava tão pouco de sangue no meu corpo ferido e pálido. Agarrei as penas de anjos, penas de corvos, juntei-as e formei inúmeras asas, distribuí-as pelas almas deambulantes, depois fiz dos restos frágeis de mim uma escada: escada quebrada e que abanava ao mínimo toque de vento. Disse-lhes: Dou-vos asas para voar, uma escada que vos entrega um caminho de paz e luz, peço-vos as vossas dores, as lágrimas, os sentimentos ameaçadores e a loucura do vosso inferno. Agora vão! Estão livres do espaço pequeno que vos aprisionava, estam livres para fazer bem ao Mundo que vos fez mal, estão curadas das feridas que o Mundo vos infligiu. Agarrem as pessoas do Mundo e deêm-lhes as vossas asas: as pessoas do Mundo precisam dessas asas para descobrirem que são capazes de voar. Quando todas as pessoas do Mundo tiverem umas asas o mundo estará entregue às mãos de anjos e vocês ter-se-ão esquecido que um dia existiu uma palavra no dicionário que significava: "Sofrimento físico ou moral; aflição; mágoa.", não existirá mais dor no Mundo. Por último apaguem o céu que conhecem e criem um novo céu, porque no céu de agora existirei eu a carregar o que, outrora, foram as grandes dores dos Homens.
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