Ego

A minha foto
Pisei todos os caminhos, incluindo aqueles que estavam cobertos de Trevas. Evitei voar sobre eles mesmo na certeza de que o Sol brilhava mais acima daquele lugar. Toquei-me de Trevas e, já sem asas, ausentei-me do Sol.

quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

Seremos transparentes

Todos nascemos transparentes. Puros e inocentes. Nascemos tão translúcidos que o sol consegue penetrar-nos o corpo até á alma, aquece-nos por dentro. E vamos crescendo envolvidos numa transparência que nos expõe ao mundo e o mundo olha-nos com olhos limpos para não nos sujar a brancura da transparência. Mas existe um momento em que caem do céu gotas de lama que aos poucos mancham os corpos outrora nítidos, são manchas de culpa atiradas pelos olhos da maldade (des)humana, pedaços de vidro que como lanças perfuram a inocência. Como veias abertas a inocência escorre para fora da nossa transparência e pelas feridas entra a escuridão e sujidade da lama. O tempo passa, as feridas agora curadas deixaram apenas pequenas cicatrizes, e por dentro dos que antigamente eram transparentes existe apenas um vazio que pesa preenchido pelo nada dos sentimentos imundos.
Mas existem resistentes, aqueles que ao serem tocados por gotas de lama correram para abrigos de amor. Como uma capa mágica o amor impediu que as gotas tocassem a pele dos transparentes, as lanças de vidro ficaram suspensas nas capas a alguns centímetros de ferir a inocência. Esses seres ficaram escondidos até que toda a tempestade passasse, e quando o sol voltou para aquecer as almas eles saíram. Ficaram espantados com todo aquele cenário, e já não reconheceram ninguém ali. No meio daquela escuridão que sabia caminhar destacavam-se eles, como pequenas estrelas. Depois de tanto tempo juntos foram obrigados a separar-se. Cada pequeno ser de luz caminhou numa direcção diferente entre a penumbra imunda dos outros seres. E á medida que andavam eram empurrados pelos que estavam sujos e impuros, feridos pelas lâminas da sua frieza. Ao longo do caminho foram descobrindo pequenos abrigos de amor onde, depois de tantos confrontos com aqueles que se esqueceram da felicidade da transparência, podiam refugiar-se para limpar a inocência que os preenchia.
Um dia no meio de uma tempestade de lama desapareceu o amor. Desapareceram os abrigos. Então com lâminas de pureza abriram feridas nos corpos frágeis e deixaram que a transparência lhes escapasse. Só tornando-se sujos poderiam suportar a ignorância dos Homens.

domingo, 13 de dezembro de 2009

Quero ter o tempo para morrer por ti

Se eu morresse aos poucos, devagar e em câmara lenta talvez tivesses tempo para pensar se querias ou não salvar-me. Se a morte me pegasse ao colo e esperasse os dias que precisas para decidir então eu acho que ela me entregaria nos teus braços. Se o tempo para morrer me desse tempo para te ligar a meio da noite tu ias fazer-me sorrir para a morte e o som do meu riso afasta-la-ia de mim. Mas não sei se o alarme vai tocar a tempo, não sei se o alarme da minha morte vai dar-me tempo de te acordar com os olhos cheios das lágrimas que tu não viste. Talvez não me encontres mais, nunca mais. Ou podes até cruzar-te comigo na rua e sei que não vamos ter tempo para parar o relógio da vida.
Hoje pensei que morrer seria mais fácil do que existir apenas entre o peso da consciência e o vazio da saudade. Atirei-me para o chão como se te procurasse e chorei, chorei tanto que deixei de conseguir respirar, e parti a lâmpada do candeeiro que iluminava aquela triste cena. A raiva de mim despedaçou-me. Só desejei saber quanto tempo levava a morrer se me matasse, e sei que se soubesse que tinha tempo de te ver chegar para me salvares a vontade de ir para sempre desapareceria.
Mas quem sou eu? Quem sou eu para te arrastar comigo para as profundezas do meu cérebro doente e despistado? Vou deixar-te livre de mim como eu queria ser. Liberta-me de ti para morrer! Não, eu não quero ser vítima de mim mesma, vítima desta dor que não sei de onde vem. Foste porto de abrigo que afastou as ruínas da minha tristeza, e soube-me bem cada momento, soube-me bem cada momento daqueles em que me esqueci do passado. Pela primeira vez em muito tempo vi-me completar-me no reflexo dos teus olhos, e do teu lado senti-me em casa.
Não sei se vais chegar a tempo de me salvar, de me acordar do sono profundo da minha morte, se a morte me pegar ao colo para me entregar nos teus braços vais sentir-me gelada, perdida na aflição da minha ressaca, porque eu não sei se te vou ligar a meio da noite para te avisar que tá na hora, e mesmo que ligasse tu não ias compreender a dimensão das minhas palavras, porque só se ama uma vez de cada vez e a minha vez passou mesmo antes de ter chegado.
És o estranho capaz de me manter viva. Quero ter o tempo para morrer por ti.

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

A Nossa Gaveta de Papéis

Deixaram uma gaveta aberta. Aquela gaveta aberta e vazia. Deixaram a gaveta aberta e não sei como a fechar. Os papéis que estavam na gaveta estão espalhados pelo meio do chão, piso-os enquanto caminho descalça pela casa e eles ferem-me os pés. E faltam papéis, e faltam palavras e frases nos papéis. E falto eu. Faltas-me tu. Deixaram a gaveta aberta e foram embora; veio o vento e misturou os papéis que estavam organizados dentro da gaveta. Veio o vento e derrubou o copo de água que estava em cima da mesa por cima das letras que cobriam os papéis. A tinta de caneta que escrevia as palavras manchou os papéis. Deixaram de existir frases, passou a existir ausência. Ausência de mim. Ausência de ti. Faltamos nós nos papéis. Quando foram embora e deixaram a gaveta aberta, não tive força nem vontade para fechá-la. Fiquei sentada no chão, encostada a um canto da sala, enquanto o vento entrava pelas janelas partidas da minha casa suja e fria. Assisti ao filme: o vento a empurrar os papéis contra as paredes, a esmagá-los uns contra os outros. O vento a esmagar-me por dentro. Tive medo, e tive frio. Não havia mais ninguém na casa. Era só a gaveta, os papéis, o vento e aquilo que ainda restava de mim. Quis gritar mas a minha voz calou-se dentro de mim. E se gritasse ninguém me ouvia porque faltavas tu. E quis chorar abraçada a alguém que não existia ali. Faltavas tu. Quis levantar-me mas não sabia da força: faltavas tu. Eu era a gaveta que deixaram aberta. E os papéis eram o meu coração fragmentado, a minha alma. As letras e frases falavam das minhas histórias, escreviam o diário da minha vida. Eles eram o vento e não podias ser tu. O vento eram eles que me esmagaram contra as paredes e deixaram sozinha no vazio assustador daquela casa. O sangue no chão era sangue das feridas abertas que ficaram aqui espalhadas por mim, porque eram eles e não podias ter sido tu. A porta da casa abriu-se. Ouvi passos, passos que vinham na minha direcção. Não quis olhar, não quis saber quem era. Não podias ser tu. Apanhou os papéis do chão, um por um. Sentou-se numa cadeira, naquela cadeira onde me sentava a escrever coisas de mim, e ordenou os papéis. Em folhas brancas escreveu novas palavras, novas frases que falavam de mim. No fim colocou todos os papéis dentro da gaveta e fechou-a, trancou a gaveta e enterrou a chave no cemitério do meu sofrimento. E tocou-me, agarrou a minha mão e deu-me a força que me faltava para me levantar. Pegou-me ao colo e levou-me para a cama. Tapou-me com aquela manta cor de céu e deitou-se ao meu lado. Ficou comigo até adormecer, disse que ia ficar tudo bem. E eu soube que eras tu, só podias ter sido tu.

José Luís Peixoto

devagar o tempo transforma tudo em tempo.
o ódio transforma-se em tempo, o amor
transforma-se em tempo, a dor transforma-se
em tempo


os assuntos que julgamos mais profundos,
mais impossíveis, mais permanentes e imutáveis,
transformam-se devagar em tempo.


por si só o tempo não é nada.
a idade de nada é nada.
a eternidade não existe.
no entanto a eternidade existe.


os instantes dos teus olhos parados em mim eram eternos.
os instantes do teu sorriso eram eternos.
os instantes do teu corpo de luz eram eternos.

tu foste eterna até o fim.

sábado, 21 de novembro de 2009

Existes em Mim

Existo em ti. Nos gestos que fazes, nas palavras caladas que não me dizes. Existo quando me olhas sem me veres, existo quando te vejo e tu não me vês. Tentei encontrar formas de existir à parte de ti, pensei em maneiras de conseguir desprender-me das teias do teu toque. Continuo a existir em ti, e tu não sabes. Tu não queres saber se me empurro contra ti sem que me sintas ou se me esmago entre o que sou e o que queria ser, apenas por ti.
Esforcei-me por calar-te no meio dos gritos surdos e não consegui. Entre as páginas queimadas daquele livro que ando a ler, encontrei-te. Encontrei-te outra vez por me ter perdido. E é tão triste. Quase tão triste como a música da minha vida. Existo em ti: em cada instante que passa sem que eu dê conta, em cada casa abandonada, ou nas ruas desertas onde vagueio sozinha na sombra de mim.
A semana passada existi em ti sem querer sequer existir. Então fui até á rua do meu quarto e despi-me do refúgio que me abriga. Na solidão dos ecos que ficaram retidos entre os espelhos vi que existi em ti. Inventei uma história triste que pusesse fim ao pesar do luto na minha voz, algo verdadeiramente triste que me impedisse de continuar a existir em ti.
Foi então que recebi a notícia: Ele morreu.
E na ausência da tua figura, na falta que ficou, eu existi. Soube que enquanto eu existisse em ti, a notícia era mentira, e tu eras vivo aqui dentro, no espaço dentro de mim onde tu existias.

José Luís Peixoto

Agora, compro as lâminas no supermercado,
vêm embrulhadas em papéis limpos.
Antes, usava uma tesoura qualquer, ou uma faca.
Eu não pertenço. O risco da pele cortada e o sangue
cobrem a voz da minha mãe, cobrem acordar
de manhã e cobrem as cartas que chegam
todos os dias à caixa do correio.

Eu não pertenço. Trato das feridas com água oxigenada
e com tintura de iodo. Trato das cicatrizes como
se tratasse de uma planta que cresce. Antes de pousar
o canto da lâmina sobre a pele, já sei onde quero fazer
o próximo corte depois desse. As cicatrizes são linhas
paralelas e imperfeitas que comparo aos fios
de uma pena molhada.

E posso cruzar-me com o espelho do guarda-fatos,
posso estender-me sobre a cama desfeita, posso
fotografar-me e afixar-me na internet, mas
no fim de cada noite, eu sei sempre que não pertenço
nem à vida, nem à morte.

domingo, 15 de novembro de 2009

Pedaços de Outono

Hoje lembrei-me que houve um tempo em que acreditava que valia a pena acreditar. Outono. Foi um tempo em que a casa da minha avó ainda era a minha casa e eu acordava todas as manhãs com o cheiro do café feito naquela cafeteira velhinha, o café da minha avó feito ao calor das brasas da lareira. Era naquele tempo que eu me levantava e ainda o sol vinha lá atrás, raiava por entre os sobreiros e batia na janela do meu quarto. E o nevoeiro vinha baixinho cobrir as cores da terra molhada pelo orvalho. Saia descalça do quarto, atravessava o corredor a correr, entrava na cozinha e já a minha avó tinha sobre a mesa a minha caneca preferida cheia daquele café cheiroso e bom. Com três colheres de açúcar, netinha. E a fatia de pão acabado de sair do forno da avó com a marmelada que eu a ajudava a fazer todos os anos. Pega-me ao colo que quero apanhar aquele ali em cima, aquele que é o mais amarelinho.
Vestia-me á pressa. Queria lá saber de mim. Preocupava-me que a minha avó fosse embora pelo monte acima buscar a lenha para o lume e se esquecesse de me chamar. Então calçava as minhas botas de borracha verdes e corria porta fora, corria monte acima e o meu cão ladrava-me, e eu dizia-lhe que viesse. Lá íamos os três, eu, o meu cão e a Avó. Lembro-me que parava sempre lá em cima e esperava pela avó porque a avó já estava velhinha e eu tinha de esperar por ela, mas não esperava muito porque a minha avó velhinha não se cansava. Sei que se demorava, vinha pelo caminho apanhando um pauzinho ali, uma pinha acolá e eu pensava, gosto tanto de ti, avó. Eu, ali, pequenina, sentada em cima de um tronco, e o nevoeiro cobria-me até aos joelhos. De repente, imaginava-me a saber voar, tinha umas asas grandes e fininhas que o sol teimoso fazia brilhar, ai como eu voava. E via a avozinha lá em baixo tornar-se cada vez mais pequenina. Mas agora que eu sabia voar ajudava mais a avó, carregava-lhe a lenha toda. Às vezes pegava na avó e voava com ela. Um portal abria-se no céu e eu atravessava para o outro lado. Era tão bonito, e só existíamos nós duas, eu e a avó. Joaninha, vamos filha! E lá voltava eu, sem asas para levar a avó ao outro lado. O caminho de regresso a casa era sempre mais triste. Vinha a pensar que não podia deixar a avó sozinha, alguém com asas podia pegar-lhe e leva-lá lá para aquele lado! E eu ia ficar sozinha sentadinha no tronco de madeira á espera que a avó voltasse porque eu sei que ela não ia á lenha sem mim.
Hoje é Outono e a avó, provavelmente, foi á lenha sozinha. Porque eu estou mais longe do que desejava estar e não posso ir á lenha com ela. Mas sei que ela se sentou naquele tronquinho e que o nevoeiro lhe tocou os joelhos. Avó sei que estiveste sentada no meu tronco e que antes de voltares para casa te esqueceste que eu não estava e disseste: Joaninha, vamos filha! E eu aqui respondi-te: Avó, posso ter umas asas?


sábado, 14 de novembro de 2009

A Falta Que Fazes

As portas ao fundo do corredor fecham-se. Tu estás lá dentro e eu não te vejo. Sinto-te apenas, meio aqui e meio lá. Queria correr até ás portas, ter força para abri-las, não ter medo de ter este medo. Chama o meu nome e diz-me como é que as coisas eram antes de nascer. Conta-me sobre as traquinices que fazia, fala-me dos sorrisos, fala-me da alegria que já não recordo. Abraça-me e protege-me como fazias tão bem.
As portas estão fechadas e tu estás lá dentro, eu não estou contigo, nunca pude estar contigo como queria ter estado. Tudo o que recordo de ti arde aqui dentro como sal nas feridas. Ficou tanto por dizer e tanto que podiamos ter feito juntos...
As portas abriram-se ao fundo do corredor. Tu não vieste. Não vieste nunca mais. Terás ido com aquele anjo que tanto querias perto de ti? Terás ido sozinho, cambaleando porque mal te aguentavas em pé?
Durante dezenas de noites sonhei que as portas se abriam e que tu aparecias, eu corria sem medo pelo corredor e pulava para o teu colo. Foram sonhos. Foram apenas os desejos a fragmentar-se em cada noite, a dissolver-se nas lágrimas que fugiam de mim quando acordava a gritar o teu nome e sabia que não vinhas, e não sabia onde estavas.
Avô, tenho pena de te ter perdido, muita pena que não me tenhas continuado a ver crescer e tenho pena que tenhas partido de mim assim quando mais precisava do teu abraço, do teu carinho. Foste embora e eu estava perdida no escuro, foste sabendo que eu estava perdida no escuro. E tenho pena avô, pena que não me tenhas visto escapar do escuro.
Os anos passaram, passaram quase quatro anos avô, e mesmo assim continuo a chorar pela falta que fazes. Fazes falta no meu aniversário, fazes falta no Natal que para mim já não significa nada porque era o dia do teu aniversário e tu já não estás.
Avô, prometo que um dia te encontro e te puxo para fora da sala que as portas ao fundo do corredor trancavam e prometo avô, que não te deixo sofrer, eu não deixo que doa mais.
Hoje estou triste. Dá-me colo Avô.

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

José Luís Peixoto

"Gruas no cais descarregam mercadorias e eu amo-te.
Homens isolados caminham nas avenidas e eu amo-te.
Silêncios eléctricos faíscam dentro das máquinas e eu amo-te.
Destruição contra o caos, destruição contra o caos, e eu amo-te.
Reflexos de corpos desfiguram-se nas montras e eu amo-te.
Envelhecem anos no esquecimento dos armazéns e eu amo-te.
Toda a cidade se destina à noite e eu amo-te."

Hinos da Natureza

Era Outono. As folhas voavam e envolviam o voo das fadas, rodopiavam em torno dos seus cabelos tocando melodias que embalavam os pequenos. A chuva molhava a terra, matava-lhe a sede, alimentava-lhe a alma. Os gnomos corriam apressados pelos bosques abrigando-se nos troncos de carvalhos. E os elfos, deitados sobre a terra molhada beijavam as mãos da Vida. À volta das fogueiras dançavam-se hinos da Natureza. A paz reivana ali. Caminhava-se de mãos dadas com os Criadores, os corações batiam ritmados pelas estações do ano. Erguiam-se as mãos aos céus agradecendo os dias bons e maus. Tudo era entendido como parte de um ciclo, o fim era mais um princípio, e o Mundo girava de mãos dadas com o Homem.
Queremos voltar a tocar melodias abençoadas pelos Deuses.
Abençoem-me.
Podemos reaprender a erguer as nossas mãos ao vosso Reino agradecendo tudo aquilo que temos. E fazer fogueiras que aqueçam as almas, dançaremos á volta dessas fogueiras enquanto brindamos à Humanidade. As fadas que feriram as asas durante a queda do Antigo Mundo serão curadas por palavras de amor e poderão voltar a preencher de cor os céus cinzentos.
Curem-me as feridas.
A Eternidade precisa que lhe abram de novo os portões divinos do nosso místico paraíso. Ela quer abraçar-nos. Precisamos de deixá-la voltar. Se ela vier tu virás também, eu sei. Voltarás para cumprir a promessa; fazes falta para curar as feridas aqui dentro da minha dor.
Ainda há quem dance e acredite. Ainda somos muitos os que alimentam a terra que a chuva já não quer molhar. E erguemos as mãos ao ciclo do Mundo, aos Criadores. Deuses que se mostram na Natureza: ainda há quem os veja e se ajoelhe. E a Eternidade: ainda te esperamos. E a ti eu ainda espero.





quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Duas Horas

Agredis-me com beijos envenenados. As tuas mãos macias deixam nódoas negras no meu corpo, e tua voz doce fere os meus ouvidos. Sinto a tua respiração no meu pescoço como uma corda que me estrangula de desejo, deixas-me sem conseguir respirar.
Não vês as lágrimas nos meus olhos? Não consegues sentir o sabor do sangue na minha boca?
Levas-me para a cama e obrigo-me a ser tua mesmo sabendo que nunca és meu quando te dás. Onde foste?
Dispo-te enquanto me despes e toco-te. Injecto-me com o prazer que te dou, que me dás. E no impulso peço-te coisas loucas e porcas: sei que vais satisfazer todos os meus pedidos por duas horas. O nosso amor é para sempre durante duas horas e depois: a porta a fechar-se, o calor a tornar-se gelo e eu, eu a morrer de fora para dentro sem me conseguir mexer ou falar. O brilho nestes olhos meus deixa de ser de prazer, é apenas dor que flui em mim, e os gemidos esqueceram-se do prazer para abraçar o choro incontrolável. Afinal as tuas mãos macias eram tão ásperas e pesadas que deixaram, em cada centímetro do meu corpo, feridas abertas que ardem como as fogueiras da Inquisição. A tua saliva tornou-se ácido que me comeu a pele e corroeu a carne.
Volta atrás! Quero-te outra vez durante mais duas horas, dentro de mim a fazer-me sentir viva. Volta atrás e dá-me o teu amor eterno por duas horas.

sábado, 24 de outubro de 2009

Refúgio de Loucos

Guardei-me num refúgio para loucos e esperei.
Esperei;
que alguém chegasse lá daquele sítio para me levar dali e não chegou ninguém.
Ninguém;
veio e aos poucos vi-me desvanecer por entre o espaço que nos separava e chorei.
Chorei;
tanto que me esqueci do que ainda era e tornei-me nada.
Nada;
é o que resta daquelas memórias que deixaste tatuadas em mim como cicatrizes.
Cicatrizes;
tenho-as espalhadas pelo meu corpo frágil e desprotegido.
Desprotegido;
continua quebrando-se contra os rochedos da tua ausência.
Ausência;
que me envenena até aos ossos, corroí-me a alma.
Alma;
que é feito de ti? Pareces estar mais distante que esta distância que o separa de mim.

Estou aqui, num refúgio para loucos.
Queria fugir da loucura do mundo para me reencontrar. Ter tempo para ficar só comigo, ou só com ele.
Estive aqui tanto tempo, suspensa nas teias desta falta que sinto, só agora percebo que para sobreviver à loucura do mundo precisava de ser um pouco mais louca.

domingo, 4 de outubro de 2009

O casulo da Larva

É um espírito inconsciente que desce à terra por vontade própria, perde-se na estratégia lamacenta de um olhar. Fixámos o olhar, parados no tempo intermédio de uma vida desprotegida. Na batalha que perdi encontrei-me contigo, vencedor daquela guerra e quis gritar “Vitória!”. Cada batida: um som que me invade até aos ossos e corrói-me a pele, aquece-me o sangue. Nas veias já só sinto o ritmo rápido e descompassado da tua voz e é como se me sussurrasses ao ouvido gritos de dor que fluem através das mentiras das tuas cordas vocais. Pensaste em mim naquela noite como pensaste nelas nas outras noites, eu sei, nunca imaginei que fosse de outra forma e por isso é quase indiferente que os teus olhos fixem os meus como se chamasses o meu corpo para a tua cama onde me agarras com uma força animal e me pedes coisas que também lhes pedes, cresces dentro de mim e eu vou-me tornando cada vez mais pequena até ao ponto em que me desvaneço entranhando-me na tua pele, entro na tua corrente sanguínea e como um vírus ataco o teu sistema imunitário. Sentes-me como uma larva que te come por dentro, formo um casulo no interior do teu ser e aconchego-me lá, sabes bem que não vou embora. E os ossos, e a pele, e a voz ou o sorriso, até mesmo o meu olhar, tudo aquilo que consumiste retorna a mim, ao sítio de onde nunca devia ter saído. Aos poucos apago-me de ti numa memória de sangue que flutua em nuvens de algodão doce. Há um casulo que cresce dentro de ti e que não se apaga em memórias de sangue, um casulo que te consome a pele até aos ossos e que te rasga as entranhas até te esmagar no silêncio de uma voz que se atreveu a sussurrar-me gritos de amor.

terça-feira, 29 de setembro de 2009

Anjo de Cal

O suspiro na noite atravessa o mármore da capela
E mostra, hoje revela
A morbidez do olhar
Que canta, encanta a luz no altar

Respira se ainda consegues sentir
Sente e pensa, memórias contidas sucumbem á queda do angelical
Da tua vida sobre as penas do anjo de cal
E vem, regressa, queres fugir

Ainda há tempo
Pouco mas há
E tu, sejas quem fores
Vais embrenhando teu próprio ser nas aranhas do sofrimento

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

Acordei.

Acordei?
Sinto-me cega de dor, dor que não consigo explicar. Não consigo ver, não consigo caminhar. Na verdade nem consigo entender se estou já de pé ou deitada. Sinto apenas que não me consigo sentir para além da dor. Vozes, meio gritos meio murmúrios, entoam na minha cabeça e deixam-me enjoada. Fragmentos da minha vida são agora espelhados no meu cérebro em pequenos flashes. Sou criança, a infância que não me lembro de ter tido. De repente, vejo-me sucumbir no mundo negro da depressão, mãos banhadas de sangue, olhos absortos de dor, gritos, vozes, pesadelos que tinha quando não conseguia adormecer. Anti-depressivos, anti-psicóticos, Prozac, dêem-lhe Prozac. Vejo as lâminas, acho que as sinto. Rasgam-me a carne como se fosse papel, e sabe tão bem. Os olhares condenatórios fazem-me sentir uma autêntica aberração. Os cortes aliviam os pensamentos cruéis que se apoderam de mim. Como vou fazê-los entender? Existe uma dor bem dentro de mim, uma dor que ninguém vê, os vossos olhos cegos parecem-me chamas que me queimam lentamente. Condenada à fogueira pela Inquisição da vossa voz. Que tipo de monstro sou eu? Os flashes continuam a passar, quero paré-los. Parem! Vejo o filme de uma vida que nem sei bem se é minha. E num flashe relembro a semana passada, tudo o que aconteceu. Mas não consigo decifrar este código.
Acordei?
O cheiro a sangue aqui é intenso, nauseabundo, quase repugnante. Os meus olhos parecem estar turvados, não consigo perceber onde estou. Sinto-me como um farrapo. Não tenho forças para me mexer. Por mais esforço que faça, o meu cérebro não responde, parece estar desconectado. Num segundo uma luz abre-se na minha direcção, penetra-me os pulsos feridos, como o sangue nas minhas veias sinto a luz no meu peito, arde como as chamas da fogueira do passado, e de repente mais nada...
Acordei.

sábado, 26 de setembro de 2009

Post Mortem

Em tempos fui outra. Um pedaço de carne enfraquecido com olhos quase mortos, absorvidos pelas chamas apagadas de uma quase vida quase morte. No espelho de reflexos já não me reflectia, pensava eu. Na verdade, apenas não reconhecia o meu próprio reflexo. Tudo o que conseguia enxergar era aquela mancha esborratada que mais me parecia um corpo no seu 20º dia de decomposição, quando o corpo já não é de pele, carne e osso, apenas um amontoado de vermes sedentos da podridão das vestes da minha alma triste . E morria . Olhar já de nada me servia, a capacidade de observação perdera-se lá do outro lado, naquele lado inquieto e frio onde existiam monstros de vozes mudas que gritavam em silêncio coisas pequenas mas imensas que me impediam de ver.
Mordia os lábios até sangrar e com tranquilidade sentia o sangue escorrer pelos cantos da minha boca misturado com a saliva envenenada pelo espírito . O coração sorria encantado pela sonoridade do metal que quebrava a minha pele, rasgava-me a carne e alimentava de sangue o pesar da consciência.

E eram todos felizes, na ignorância da minha dor.


quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Aconteceu

Aconteceu.
Um dia adormeceste com vontade de não acordar. Acordaste com medo daquilo que te esperava lá fora. Quiseste ficar na cama, de olhos fechados, escondido dos sentimentos que te perseguiam.Não sabes como foi que aconteceu.Não percebeste. Não entendeste. Ninguém viu que o mundo estava a acabar, ele acabava dentro de ti.
Escuro.
Ficou tudo escuro e vazio.
Dentro de ti o vulcão adormecera. A lava queimou tudo á sua passagem e o que restou foram as cinzas de momentos que nunca hão-de voltar.
Aconteceu. Nem reparaste e deixaste-te ir.
Eu via-te ali e só tu não te conseguias ver.

Simples desejo

Respirando o inconsciente sangue que ferve no chão. Perdi-me nas palavras que se afastaram do meu ser e eu quis morrer, já não consigo mais.
Vi tantas lágrimas nos olhos dela, tantos sorrisos disfarçaram aquele desespero. Até que um dia não deu para disfarçar mais nada.
Os espinhos da coroa libertaram-lhe o espírito e ele voou. Foi longe demais.
Não houve tempo para dizer adeus, as respostas ficaram por dar a perguntas ainda não formuladas.
Parecia angelical mas eram só sombras do vazio que pairava no esqueleto do nada. A chuva, aqui dentro de casa. O sol, longe deste mundo, longe dos olhos infinitos. O veludo daquele vestido e a resposta que soou em vão. Nada adiantava e ainda não adianta. Era tudo um desejo.
O desejo perdeu-se no repouso frio daquela manhã. A manhã roubou de nós aquele desejo e as memórias ou as sensações que já não são capazes de existir levaram tudo aquilo que ainda havia por criar. Só ficou esta dor sem explicação e estas vozes a segredar palavras que não entendo que não quero entender.
O desejo que era de vida, o desejo que já foi de vitória continua a crescer e hoje é este desejo, o desejo que se quebra no nevoeiro e é de morte e é de desespero, a morte virou um desejo que só eu não quero ter de desejar.

sábado, 19 de setembro de 2009

Vestígios

Vestígios, sobras de civilizações, o passado em retalhos, qual puzzle espalhado pelos quatro cantos do mundo que insisto em montar. De onde vem a necessidade de explicação, de onde desencantámos a vontade de conhecer a génese, a essência. Por que não seguir em frente sem olhar para trás, caminhar apenas, um pé à frente do outro, movimento repetitivo, todos os dias, um pé à frente do outro, cabeça levantada e ausência, ausência de questões, falta de necessidade, caminhem na linha recta da rotina.
Um pé à frente do outro, passos contados, medida certa entre um pé e o outro, não olhes para a esquerda, muito menos para a direita, a cabeça erguida e o olhar em frente, o ritmo certo como a batida cardíaca de um coração saudável. Arritmia: um batimento descompassado, é o pé que não se põe à frente do outro, a cabeça que não está erguida, o olhar que se desviou da linha da frente. São questões, necessidades, respostas; a origem? A génese?
Todas as ruas, entradas, saídas, becos. Todos os sítios, moradas, lares. Tudo aquilo por onde passas, tudo aquilo por que passas já foi algo que não é mais, será um dia coisas que nem afiguras. Significados alteram-se, ciclos iniciam-se depois de se terem encerrado, tudo culmina e tudo renasce. Um pé à frente do outro, olhos postos na linha concreta da rotina. Tudo se passa ao teu lado, tudo te passa ao lado.
Vives. Dizem que vives. Na verdade tudo o que fazes é limitar-te a respirar. Viver requer muito mais essência. Exige muito mais dor. Desconheces-te. És irreconhecível perante ti mesmo, o vazio preenche o teu interior. Também eu sou poço de vazio, o que torna os nossos “vazios” tão distintos é que eu continuo à procura de algo que o aniquile, e tu? Tu segues imune às questões, imune às evidências do conhecimento de um antepassado que desconheces, e vais na vanguarda, um pé à frente do outro. Ignoras que atingir a meta não é o principal objectivo. Pois, de que adianta atingir a meta se o percurso que fizeste está completamente errado? De que adiantam os sorrisos se o que te faz rir e os que te fazem sorrir não te pode, não te podem fazer chorar? As lágrimas são o sangue da alma, são a sua essência. Tão poucas foram as vezes em que choraste: de que se alimenta a tua alma? Ainda serás possuidor de algum tipo de espírito ou tê-lo-ás já perdido nessa viagem que insistes em fazer, sempre com um pé à frente do outro?
Aniquilaste a essência da humanidade, e já somos tantos neste globo, tantas pessoas a vaguear: um pé à frente do outro, olhar colado na linha recta da rotina; tão poucos humanos neste mundo, os dois pés juntos no chão, olhar perdido entre muitas direcções observam e assimilam tudo, mãos que desenterram, purificam, mãos que dão à luz os abortos escondidos do passado.