Respirei fundo na tentativa desesperada de me desprender de mim. Pedaços de mim rodopiavam em torno do meu corpo numa queda fatal contra o tempo que não havia. Contra um tempo que já não havia. Respirei fundo elevando o meu olhar pálido e cego contra os céus. Lembro-me bem de ter respirado fundo e lembro-me do céu, da cor do céu, quase tão pálido e cego como os meus olhos que o subornavam em preces caladas.
Caída sobre as escadas frias e pesadas daquele sítio que não conhecia vi-te. Eu vi-te dentro de mim, numa construção de perfeição que não conhecia. Construí-te. Cada gesto teu, cada traço meigo e rude, cada acto cruel e inocente. Criei-te sobre a bipolaridade dos meus comportamentos. Transformei-te: quando trocava palavras sem significado com as estrelas, ou nas vezes em que os meus pés descalços pisaram as arestas de fogo da chama apagada, transformei-te. A ilusão de ter dentro de mim, criado em perfeição, numa perfeição que era a minha medida, fazia-me sentir completa. Vi-te crescer, crescer em vida e em realidade, sem nunca teres saído de dentro de mim; vi-te percorrer distâncias e conhecer coisas, vi-te escolher vozes e palavras, vi-te alterar significados e verdades, nunca precisaste de sair de dentro de mim.
Viste-me chorar e abraçaste-me de dentro para fora. Nas vezes em que gritei tu abafaste os sons dolorosos das minhas cordas vocais, e seguraste-me quando caí desamparada depois de ter engolido compulsivamente as cores e as letras e os componentes e as indicações dos comprimidos. Não me disseste, pára, e não me disseste, chega. Nunca me disseste, estou farto, ou vou-me embora. Nunca gritaste, desaparece, ou esquece que existo. Sempre á mesma hora e no mesmo tom de verdade disseste, amor, ou amor.
As noites que passava sozinha só na tua companhia sabiam-me a ti, e a lua, e a pétalas de rosa, e a mel. Sabiam-me às coisas boas que tu me sabias.
E depois veio a manhã em que acordei e te vi fora de mim. Eras tu a atravessar a minha boca, os meus olhos, cada poro da minha pele, eras tu que tinhas atravessado o teu corpo por cada raiz do meu cabelo. E estavas agora fora de mim. Olhei-te com olhos assustados e falei-te com lábios de pânico, como? porquê? As janelas abanavam, a porta abria e fechava, os raios caiam em cima de mim e iluminavam-me, via-se um buraco dentro de mim, um vazio que cheirava a solidão, onde antes havias tu agora havia a tua falta. Olhei á minha volta: paredes pintadas de sujidade, lama pegajosa que escorria e queimava o chão de madeira. O fogo alastrava-se na casa. Formou um círculo. Dentro do círculo: eu sem ti, a cama e tu. E perguntei outra vez: como? porquê? Sabia que estava na hora, era a mesma hora e o mesmo tom de verdade, e tu não dizias amor, ou amor. Apertaste-me o braço como se quisesses que os teus dedos se espetassem nele até perfurar o osso, empurraste-me para o chão. A cama ardeu. No círculo: eu sem ti, e tu. As minhas lágrimas soltaram-se apressadas por morrer aos teus pés, e a minha voz muda procurava palavras para te dizer. Então olhaste-me com desprezo e aversão, perguntaste-me como tinha sido capaz e eu, sem perceber, perguntei do que falavas, disseste que te tinha escondido tantas verdades e que não me podias perdoar, eu perguntei-te que verdades, e tu respondeste, eu amava-te porque vivia dentro de ti, eras única porque estava dentro de ti, dizia-te amor, ou amor porque estava dentro de ti, amei-te tanto enquanto estive dentro de ti, mas tu, tu falsa e egoísta, tu fraca e impiedosa, tu nunca me disseste que podia estar dentro de qualquer mulher. Voltou costas. Abriu a porta e foi embora. Debaixo de mim abriu-se um abismo, vi-me cair aos poucos, e depois de repente. O abismo fechou-se.
E ele nunca percebeu que me levou, levou-me dentro dele porque ele era o único que eu amava ao ponto de lá querer estar para sempre.