Ego

A minha foto
Pisei todos os caminhos, incluindo aqueles que estavam cobertos de Trevas. Evitei voar sobre eles mesmo na certeza de que o Sol brilhava mais acima daquele lugar. Toquei-me de Trevas e, já sem asas, ausentei-me do Sol.

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Returns to me my lost lover

Se eu conseguisse tocar o passado, nem que fosse apenas com a ponta dos meus dedos, , tocar-te-ia. E se eu conseguisse falar ao passado, ele responder-me-ia com a tua voz. Ainda oiço os teus gritos que me rasgavam a carne, ainda te vejo caminhar na minha direcção, ainda te vejo caminhar numa direcção inversa à minha. Cada passo que deste para longe de mim ficou marcado a sangue no caminho, e nem o facto de teres prometido voltar amenizou o peso que se abateu sobre mim. Esperei-te. Estações vieram e foram. Os teus passos marcados a sangue no caminho não se desvaneceram. Nem um sinal. Nada chegava para adormecer a dor. E doía-me o corpo até à alma. Chegaste uma noite ao mundo para onde me transportava enquanto dormia: vi-te olhar o céu com raiva e desespero e vi-te gritar o meu nome com palavras de pedra manchadas de sangue e lágrimas. E a noite abateu-se sobre mim e sobre todos os nossos lugares, os lugares que já não eram nossos porque, tal como eu, já não te podiam ter.
Ficou a recordação vaga, muito vaga e desvanecida da tua presença. Ficou a cicatriz da tua partida gravada no meu peito, o frio do teu corpo privado do meu toque abraçou-me a alma. O sabor do teu sangue na minha boca. E consumi-te com raiva e amor, desejo e aversão: deixaste-me com a ilusão da tua promessa. E o nosso amor só foi eterno sobre a égide da minha memória.





sábado, 16 de janeiro de 2010

O cofre do meu peito aberto

Condundi as palavras e os significados de cada palavra. Por cada sombra, um raio de luz. Escrevi as palavras que me disseste, escrevi cada palavra como se fosse a única. Guardei a folha escrita das tuas palavras no cofre do meu peito aberto, fechei o cofre com o código da sonoridade da tua voz. O cofre ficou fechado, o meu peito manteve-se aberto. No meu peito aberto e escuro ficou o cofre e lá dentro ficou a folha escrita por mim com as palavras que me tinhas dito, que podias ter dito, e eu não queria esquecer. Foram palavras que me disseste enquanto pensava em ti, enquanto te transporatva para perto de mim sem saber sequer onde estavas. Foram palavras que se ouviram no interior do que sou e que fizeram eco no reflexos apagados do que podia ser. As palavras que escrevi mais ninguém podia ter escrito, só eu ouvi as palavras. Só eu senti as palavras. Misturei as palavras e tentei formar uma frase bonita para guardar no cofre. Uma frase bonita que tu me tinhas dito. Uma frase bonita que eu queria que me tivesses dito. As palavras: amo-a, quero, estar, com, ela, se, soubesses, como, ela, é, linda, sinto-me, vivo, perto, dela. E eu a tentar formar a frase bonita que me podias ter dito.
Confundi as palavras e os significados de cada palavra. A frase: Amo-te, quero estar contigo. Se soubesses como és linda... Sinto-me vivo perto de ti! E o meu sorriso ao ler a frase, a frase que criei com as palavras que me disseste. Disseste-me tantas vezes que a amavas, e o meu sorriso a transformar-se em raiva, e ódio, e dor, solidão. Rasguei-te as cordas vocais para abrir o cofre e tirei de lá a folha, queimei com a chama do meu sangue cada palavra, cada linha; adormeci sobre as cinzas da folha e sobre os restos das tuas cordas vocais. Adormeci com o cofre aberto, com o peito aberto e mais escuro, mais frio. Adormeci sem palavras ou frases bonitas ditas por ti, e não fui feliz mas fui real.

Sou tudo aquilo pelo qual não tens de te importar

Disse a mim mesma que não me ia importar. Que não me podia importar. Importar-me implicava muitas coisas, e eu não tinha vontade dessas coisas todas. Não tinhas de me amar sempre, não tinhas de me amar em cada momento. Por mais que eu precisasse de um amor descontrolado e impaciente: eu desesperava por um amor rebelde e irracional, avassalador. Tu não tinhas de me dar esse amor. Eu pensava, tu não tens de me dar esse amor e eu não me vou importar quando não me amares. Disse a mim mesma que não me ia importar, porque para todas as coisas que isso implicava, faltava-me a vontade.
Não me amaste sempre, não me amaste em cada momento. Não me podia importar. E tu não podias importar-te se eu não me importava. Faltou-te saber que me importei. Importei-me pela falta de um amor descontrolado e impaciente: eu desesperava por um amor rebelde e irracional, avassalador, amor que faltou, amor que nunca esteve.
Num dia em que consigas ver além de ti, um dia em que consigas ver além das mentiras escondidas entre as verdades caladas, vais importar-me. Vais procurar-me e eu vou dizer-te, não te importes. Tocas-me a mão e eu digo, não te importes. Tocas-me as lágrimas e eu digo, não te importes. Tocas-me as cicatrizes e eu digo, não te importes. Tocas-me o sangue que pinta o chão e eu digo, não te importes. Eu só digo, não te importes, e tu só dizes, importar-me implica muitas coisas e eu não tenho vontade dessas coisas.


O meu bisavô morreu. Eu nunca chamei bisavô ao meu bisavô, chamava-lhe pelo nome. E ele chamava-me muitos nomes diferentes porque os anos turvaram-lhe a memória do meu nome. Quando conheci o meu bisavô ele já era muito velho e rabugento, mais tarde percebi que ele sempre tinha sido rabugento, e também sempre tinha sido velho. Lembro-me sempre de ver o meu bisavô sentado numa cadeira à porta de casa, e lembro-me de ele não gostar que os meus gatos lhe entrassem em casa. A névoa tinha ocupado os olhos do meu bisavô muito antes do dia em que morreu: todos os dias de sol, em que o céu era azul e sem nuvens o meu bisavô dizia, não se vê nada com este nevoeiro, e mais tarde o meu bisavô passou a dizer que todos os dias fazia nevoeiro e que o tempo já não era como antes. O tempo já não era o tempo dele. O meu bisavô chamava a minha avó todas as manhãs e zangava-se quando ela demorava. Às vezes penso que o meu bisavô nunca pensou em mim. Não me lembro da felicidade do meu bisavô, não me lembro do amor dentro do meu bisavô. Quando me lembro dele só o vejo sentado na cadeira à porta de casa, e a zangar-se com os gatos e com a minha avó. E lembro-me que os dias do meu bisavô eram sempre cheios de nevoeiro.
O meu bisavô morreu e eu não chorei. O meu bisavô morreu e eu não fui ao funeral. Foi muita gente ao funeral do meu bisavô, gente que não era prima, neta, filha ou irmã do meu bisavô. Mas eu não fui. Não chorei quando o meu bisavô morreu. Às vezes penso que devia ter chorado pelo meu bisavô mas depois também penso que o meu bisavô nunca pensou em mim. O meu bisavô nem sabia o meu nome, e quando me chamava, chamava-me muitos nomes diferentes e nunca acertava no meu.
Quando passo pela casa onde morava o meu bisavô e onde ele era mau e rabugento ainda o vejo lá, ele está sentado numa cadeira à porta de casa, e os olhos dele estão muito longe, perdidos no tempo que a vida já lhe roubou. Mas a verdade é que ele não pode lá estar, porque a casa do meu bisavô agora está cheia de coisas inúteis: caixas, caixotes, caixas mais pequenas com coisas avariadas, caixas médias com relógios partidos, malas de viagem que estão aprisionadas na casa do meu bisavô.
O meu bisavô adormeceu uma noite, e nessa noite adormeceu para sempre. De manhã ele não gritou, Maria, que é o nome da minha avó, ele nunca mais gritou, Maria. O meu bisavô, pouco antes de morrer, dizia muitas coisas sem sentido, e eu ria-me.
Eu podia ter chorado pelo meu bisavô, podia ter ido ao funeral do meu bisavô, podia ter-me importado mais com a morte do meu bisavô. Afinal ele era meu bisavô e eu nunca lhe chamava bisavô, chamava-lhe, Tio Domingos. Domingos era o nome do meu bisavô, e tio era o que toda a gente lhe chamava.
O meu bisavô morreu há dois anos e eu não chorei, mas ainda me rio das coisas sem sentido que o meu bisavô dizia.

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

Tempo

São pedaços de tempo que se rasgam diante de mim. Fragmentos de um tempo que ficou parado no relógio daquela sala vazia. Mesmo quando penso que o meu tempo me foge, ou que se atrasa, engano-me: o meu tempo ficou parado. Tudo o que vivo; vivo tudo sem tempo. Vivo no tempo da gente alheia. Caminho no meio da gente que desconheço e roubo-lhes o tempo que não têm para mim. Em silêncio sussurro: dá corda ao relógio do meu tempo. E enquanto o sussurro não se espalha através de um eco mudo fico aqui sentada só para não vos roubar mais tempo.


Florbela Espanca


O meu mundo não é como o dos outros, quero demais, exijo demais;

há em mim uma sede de infinito, uma angústia constante que eu nem mesma compreendo, pois estou longe de ser uma pessoa; sou antes uma exaltada, com uma alma intensa, violenta, atormentada, uma alma que não se sente bem onde está, que tem saudade… sei lá de quê!


Florbela Espanca

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Respirei fundo na tentativa desesperada de me desprender de mim. Pedaços de mim rodopiavam em torno do meu corpo numa queda fatal contra o tempo que não havia. Contra um tempo que já não havia. Respirei fundo elevando o meu olhar pálido e cego contra os céus. Lembro-me bem de ter respirado fundo e lembro-me do céu, da cor do céu, quase tão pálido e cego como os meus olhos que o subornavam em preces caladas.
Caída sobre as escadas frias e pesadas daquele sítio que não conhecia vi-te. Eu vi-te dentro de mim, numa construção de perfeição que não conhecia. Construí-te. Cada gesto teu, cada traço meigo e rude, cada acto cruel e inocente. Criei-te sobre a bipolaridade dos meus comportamentos. Transformei-te: quando trocava palavras sem significado com as estrelas, ou nas vezes em que os meus pés descalços pisaram as arestas de fogo da chama apagada, transformei-te. A ilusão de ter dentro de mim, criado em perfeição, numa perfeição que era a minha medida, fazia-me sentir completa. Vi-te crescer, crescer em vida e em realidade, sem nunca teres saído de dentro de mim; vi-te percorrer distâncias e conhecer coisas, vi-te escolher vozes e palavras, vi-te alterar significados e verdades, nunca precisaste de sair de dentro de mim.
Viste-me chorar e abraçaste-me de dentro para fora. Nas vezes em que gritei tu abafaste os sons dolorosos das minhas cordas vocais, e seguraste-me quando caí desamparada depois de ter engolido compulsivamente as cores e as letras e os componentes e as indicações dos comprimidos. Não me disseste, pára, e não me disseste, chega. Nunca me disseste, estou farto, ou vou-me embora. Nunca gritaste, desaparece, ou esquece que existo. Sempre á mesma hora e no mesmo tom de verdade disseste, amor, ou amor.
As noites que passava sozinha só na tua companhia sabiam-me a ti, e a lua, e a pétalas de rosa, e a mel. Sabiam-me às coisas boas que tu me sabias.
E depois veio a manhã em que acordei e te vi fora de mim. Eras tu a atravessar a minha boca, os meus olhos, cada poro da minha pele, eras tu que tinhas atravessado o teu corpo por cada raiz do meu cabelo. E estavas agora fora de mim. Olhei-te com olhos assustados e falei-te com lábios de pânico, como? porquê? As janelas abanavam, a porta abria e fechava, os raios caiam em cima de mim e iluminavam-me, via-se um buraco dentro de mim, um vazio que cheirava a solidão, onde antes havias tu agora havia a tua falta. Olhei á minha volta: paredes pintadas de sujidade, lama pegajosa que escorria e queimava o chão de madeira. O fogo alastrava-se na casa. Formou um círculo. Dentro do círculo: eu sem ti, a cama e tu. E perguntei outra vez: como? porquê? Sabia que estava na hora, era a mesma hora e o mesmo tom de verdade, e tu não dizias amor, ou amor. Apertaste-me o braço como se quisesses que os teus dedos se espetassem nele até perfurar o osso, empurraste-me para o chão. A cama ardeu. No círculo: eu sem ti, e tu. As minhas lágrimas soltaram-se apressadas por morrer aos teus pés, e a minha voz muda procurava palavras para te dizer. Então olhaste-me com desprezo e aversão, perguntaste-me como tinha sido capaz e eu, sem perceber, perguntei do que falavas, disseste que te tinha escondido tantas verdades e que não me podias perdoar, eu perguntei-te que verdades, e tu respondeste, eu amava-te porque vivia dentro de ti, eras única porque estava dentro de ti, dizia-te amor, ou amor porque estava dentro de ti, amei-te tanto enquanto estive dentro de ti, mas tu, tu falsa e egoísta, tu fraca e impiedosa, tu nunca me disseste que podia estar dentro de qualquer mulher. Voltou costas. Abriu a porta e foi embora. Debaixo de mim abriu-se um abismo, vi-me cair aos poucos, e depois de repente. O abismo fechou-se.
E ele nunca percebeu que me levou, levou-me dentro dele porque ele era o único que eu amava ao ponto de lá querer estar para sempre.

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

Se me olhasses por dentro

Se me olhasses por dentro ias encontrar-te lá , a consumir-me de luz e escuridão. A ausência de ti arde-me no corpo como o fogo do passado. De todas as vezes que te encontrei, depois de teres partido não te consegui agarrar e mataste-me como me matas agora, e por isso não preciso de me matar.
Conforta-me saber que és tu quem me rouba da vida, tu que me roubaste da morte naquela batalha em que só tu eras guerreiro. Ainda te vejo a olhar-me coberta do sangue das tuas feridas que o meu amor por ti não chegou para sarar. Chorei-te. Sei que sabes que te choro ainda, e as lágrimas são em vão. Mas quero continuar a sentir a tua falta até que essa falta deixe de fazer sentido por voltares a desejar que te pertença mesmo que não queiras e não possas estar comigo. É o destino. Pertencer-te é o meu destino. O destino simples que falta cumprir-se.