Ego

A minha foto
Pisei todos os caminhos, incluindo aqueles que estavam cobertos de Trevas. Evitei voar sobre eles mesmo na certeza de que o Sol brilhava mais acima daquele lugar. Toquei-me de Trevas e, já sem asas, ausentei-me do Sol.

segunda-feira, 19 de abril de 2010

Mais uma Rosa

As lágrimas deslizam pelo rosto dela. A sua pele pálida fica roxa de raiva e tristeza. Os sentimentos empurram-se e confrontam-se dentro dela enquanto tudo desabafa à sua volta. Existe um sentimento que ela não sabe como controlar, um sentimento que tem sabor à ferrugem que pinta o portão do casarão velho, sabor à cinza que é libertada durante a erupção de um vulcão. Ela sai de casa, fecha a porta com força, lá dentro a moldura que estava em cima da mesa caiu, o vidro partiu-se sobre a fotografia que a moldura protegia, o vento pegou na fotografia e fê-la rodopiar até à lareira. As chamas da fogueira consumiram as cores da fotografia. Ficaram só o vidro e a moldura, espalhados pelo chão. Ela estava também espalhada pelo chão, dentro de si algo queimava, e o que a queimava roubava-lhe as cores, como as chamas haviam roubado as cores que delimitavam os corpos na fotografia. Correu pelas ruas pintadas de preto e branco, empurrou pessoas que não a sentiram, as suas lágrimas tocaram as mãos de pessoas e elas não sentiram, como poderiam sentir? Ninguém viu como os sentimentos a matavam lentamente como um veneno que se apodera do sangue num corpo até que todo o sangue seja veneno.
Ela corria e pensava que ninguém ia perceber a dimensão da dor dentro dela e por mais que lhe dissessem que tudo ficaria bem ela sabia que isso não ia acontecer; ela corria e chorava enquanto pensava que o tempo não ia curar as feridas abertas, as feridas abertas no corpo, por dentro do corpo; ela corria e morria e só pensava que podia perdoar tanta coisa se soubesse como se perdoar por ter confiado. Os passos iam-se tornando mais largos, ela corria cada vez mais devagar, os pensamentos eram cada vez mais escuros e pareciam pesar-lhe no corpo. Ela já não podia com os sentimentos que lhe pesavam no corpo. Parou. A força ausentou-se dela e caiu de joelhos no chão de terra. Olhou para todos os lados e não existia ninguém. A solidão habitava aquele espaço como a habitava a ela. Por dentro ela sentia-se terra e lama, chuva gelada, vento forte e cinza. No espaço dentro dela tudo se assemelhava ao espaço fora dela. Não existia nada lá fora, e já não existia mais nada lá dentro. Viu o seu reflexo numa poça de água e quis ser ela o reflexo, ela sentia-se o reflexo desvanecido e frágil de tudo o que poderia ter sido. Ela olhava o céu e pensava que ainda podia ser capaz de lhe perdoar se soubesse como se perdoar.
A força regressou a ela. Ergueu o corpo lentamente e sorriu. Voltou as costas ao lugar da solidão e começou a correr. O peso dos sentimentos fugiu-lhe. Ela corria depressa, corria por um caminho escuro, um caminho que era cada vez mais escuro e estreito. E sorria. Ela corria e sorria e pensava que se soubesse como se perdoar ainda o poderia perdoar. Mas ela sabia que nunca se perdoaria por ter acredito e por isso jamais seria capaz de lhe dar o seu perdão. O caminho estreito, o escuro, ela a correr. Abriu a porta, entrou em casa, pisou a moldura e o vidro partido da moldura. Subiu as escadas em direcção ao quarto. Entrou no quarto com pressa de ver o que ele escondia. A cama desfeita, as roupas espalhadas pelo chão. O corpo dele espalhado pelo chão. A lembrança: ela deitada ao lado do corpo dele, do corpo dele espalhado pelo chão; ela abraçada ao corpo dele, as lágrimas dela a tocar-lhe a pele morta e o sangue. Ela estava de pé, mãos coladas na barriga que crescia invisível, e lembrava-se. O cheiro a sangue aumentava, ele não podia ver as mãos dela coladas na barriga que crescia invisível. Ela saiu do quarto, fechou a porta, desceu as escadas apressadamente, pegou na chave do carro e partiu.
Mamã onde está o pai? e uma voz que responde: está longe, mas ele manda-te esta rosa, meu amor. E a verdade vai-se escondendo por detrás de cada rosa até formar um roseiral. Mãe, nunca percebi porque são negras as rosas que o pai manda.

domingo, 18 de abril de 2010



Sabes de mim? Um dia perdi-me num nevoeiro que passava pela porta de minha casa, nunca mais me encontrei. O meu corpo no meio do nevoeiro foi levado pelos meus pés que caminhavam sozinhos. Não sei para onde me levaram os pés, para onde me levou o nevoeiro. Agarrei-me às mãos de um desconhecido que passava, um desconhecido que me olhava e que me via sem saber que o que via já não era eu. Não podia ser eu, não era eu aquela que os pés guiavam numa direcção sem direcção nenhuma, não era eu aquela que o nevoeiro envolvia e arrastava sem pedir permissão, não era eu que as mãos daquele desconhecido agarravam e puxavam tentando fazer-me regressar para onde nunca estive. Mas o desconhecido e as mãos do desconhecido não tiveram força para me roubar daquela mancha espessa de névoa, a força dele não lhe bastou, e eu já tinha dado toda a força que algum dia exitira em mim. Gastei a força que nunca tive a fazer de mim degraus de uma escada para os ajudar a subir. A escada que eu fui foi-se desfastando com o tempo, foram subindo sem que vissem que me fragilizava, ninguém reparou que na escada de mim havia noite e frio, haviam passos ásperos e pesados que enegreciam o meu espírito.
No caminho que os meus pés construíram vi tanta dor, dores que estavam fora de mim e que eu puxei e aprisionei no meu pequeno mundo, varri dos caminhos as dores que voavam perdidas, empurradas pelo vento. Poluíam a vida e eu não podia deixar. Guardei todo o lixo que eram aquelas dores, guardei todo o lixo e o lixo preencheu-me de nada. As mãos dele podiam proteger-me, mas só se ele soubesse e sentisse e visse como eu.
Cheguei a um sítio qualquer, cheguei a um sítio qualquer onde estava ainda mais perdida de mim do que de ti. Era tudo tão branco, caíam penas de anjo do céu, penas de anjos e de corvos misturavam-se e matavam-se em quedas rápidas. Quantas me tocaram a pele antes de se matarem mesmo à frente do meus olhos. Agarrei as penas todas, todas as penas que consegui agarrar e guardei-as no cofre do meu destino. Guardei as penas que salvei da morte predestinada. Deitei-me no chão frio e senti o frio do chão mistirar-se com o meu corpo frio e ausente. Fechei os olhos com força e tentei ver se conseguia descobrir-me no escuro que se abria por detrás dos meus olhos fechados. Uma mão tocava-me o cabelo, uma mão tocava-me o rosto, uma mão tocava-me os lábios. Uma mão de luz abraçou-me a escuridão. Abri os olhos e não vi a mão, não vi de quem era a mão. Olhei o céu coberto de tristes sinas, tristes almas habitavam aquele céu. Senti-me flutuar, os meus pés deixaram de tocar o chão. Os ramos secos das árvores mortas levantavam-me do chão e colocavam-me mais perto das almas tristes que deambulavam ao longe, almas tristes acompanhadas por cânticos negros. Vi-me no meio daqueles tristes espectros despedaçados, sem destino, sem salvação. Restava tão pouco de vida no meu sangue, restava tão pouco de sangue no meu corpo ferido e pálido. Agarrei as penas de anjos, penas de corvos, juntei-as e formei inúmeras asas, distribuí-as pelas almas deambulantes, depois fiz dos restos frágeis de mim uma escada: escada quebrada e que abanava ao mínimo toque de vento. Disse-lhes: Dou-vos asas para voar, uma escada que vos entrega um caminho de paz e luz, peço-vos as vossas dores, as lágrimas, os sentimentos ameaçadores e a loucura do vosso inferno. Agora vão! Estão livres do espaço pequeno que vos aprisionava, estam livres para fazer bem ao Mundo que vos fez mal, estão curadas das feridas que o Mundo vos infligiu. Agarrem as pessoas do Mundo e deêm-lhes as vossas asas: as pessoas do Mundo precisam dessas asas para descobrirem que são capazes de voar. Quando todas as pessoas do Mundo tiverem umas asas o mundo estará entregue às mãos de anjos e vocês ter-se-ão esquecido que um dia existiu uma palavra no dicionário que significava: "Sofrimento físico ou moral; aflição; mágoa.", não existirá mais dor no Mundo. Por último apaguem o céu que conhecem e criem um novo céu, porque no céu de agora existirei eu a carregar o que, outrora, foram as grandes dores dos Homens.

sexta-feira, 2 de abril de 2010

Sombra

Afastei-me da sombra que me acompanhava. Ela perseguiu-me, seguia lado a lado comigo. Eu e a sombra. As pessoas olhavam e acenavam, diziam "bom dia" e "boa tarde", eu acenava-lhes e a sombra também. Tentei ignorar a sombra, deixá-la ficar para trás enquanto ela dormia sobre o tapete de névoa do meu quarto. Quando pensava ter escapado, olhava para o lado, a sombra. O ombro da sombra colado no meu ombro.
Eu ia a chorar, a sombra ia como sempre: sombra. As pessoas viam-me e ao passar sorriam e diziam "bom dia" e "boa tarde". Porquê? Porque é que ninguém me pergunta se preciso de ajuda, o que se passa comigo, porque fogem de mim gotas de orvalho, porque me afogo no sangue da minha alma? Corri para casa. A sombra correu ao meu lado, sempre com os passos coordenados com os meus, numa coordenação tão perfeita que chegava a irritar.
Cheguei a casa, fui à casa de banho, acendi a luz que dava cor de fogo à casa de banho mas que mantinha a sombra sempre sombra. Queria lavar a cara, arrancar-lhe as lágrimas. Abri a torneira, as minhas mãos encheram-se da água da torneira e tocaram-me o rosto. Ocorreu-me olhar o espelho, ver se se notava que tinha estado a chorar. Olhei. E nesse instante eu vi a sombra mas não me vi a mim.

Procuro uma predominância de luz num lugar qualquer
preciso de encontrar aquele ponto que é o centro do meu universo.
E sempre que te procuro, meu fiel servidor, algo deixa de me pertencer…
em lençóis de tempo eu desmorono, ressuscito e tropeço.
Caminhando sobre uma aresta de névoa solta e fria
recuo até ao dia da nossa triste derrota,
ver-te longe e condenado à noite sombria;
perdido entre o sonho intenso e o clamar da gente morta.
Deixando de intervir no teu caminho sem retorno
deixo-me ficar com a minha eterna solidão,
abrigada nas asas de um corvo sem dono.
Perco-me assim, triste fim o meu, que é feito da salvação?

quinta-feira, 1 de abril de 2010

Tempo.
Quero mais tempo. Precisava de mais tempo, queria ter o tempo que não tenho para voltar atrás. Queria rebobinar a minha vida até ao momento em que, pela primeira vez, fiz alguém sofrer, porque foi a partir desse momento que percebi que dói mais saber que magoei do que quando me magoam.
Dou passos lentos por aquelas ruas estreitas da minha Vila, daquilo que um dia foi uma coisa totalmente diferente. As ruas são as mesmas, as pedras das calçadas são aquelas que já pisara antes, antes do tempo de hoje. As paredes que me olham ainda estão de pé. O rio. O mar. Está tudo no mesmo lugar, tudo pertence ao mesmo espaço, nada se alterou.
Fui eu que mudei. Fui eu quem alterou o significado das coisas, o tempo deu-me tempo para isso. Não sei se era isso que queria, às vezes ainda desejava sentir tudo como sentia antes; outras vezes não, outras vezes olho para tudo e penso que o facto de sentir algo diferente quando os meus olhos vêem as mesmas coisas que viram durante anos, há alguns anos, indica que dentro de mim, no espaço em mim onde tudo estava desconcertado e confuso, onde a obsessão e o sangue se entrelaçavam pelo meu corpo e onde o veneno me consumia lentamente com o objectivo de me fazer sentir bem o sabor amargo da minha morte, houve uma mudança. Levaram-me a uma oficina onde concertaram o que estava desconcertado, puseram no sítio certo cada peça de mim. Fui, parcialmente, reconstruída.
O tempo.
O tempo que já passou depois do momento em que, pela primeira vez, fiz alguém sofrer por mim, já ficou por lá, longe demais para que eu consiga, ainda, agarrá-lo. Quero sofrer pelos momentos em que no tempo deste tempo perdido, fiz alguém sofrer. Quero a dor dos outros nas gavetas da minha dor. Todas as dores a preencherem um vazio que fica cada vez mais vazio.
Vejo os sorrisos: falsos, hipócritas, invejosos, destrutivos, ameaçadores. Vejo as lágrimas: límpidas, puras, sangue da alma que nasce nos pulsos. Prefiro as lágrimas aos sorrisos, excepto se for o sorriso de uma criança. Amontoem sobre mim os sorrisos das crianças, a vida dentro das crianças que é ainda a verdadeira vida, seres humanos, sensibilidade e verdade.
Quando voltar a passar pelas ruas estreitas, pelas pedras da calçada, pelas paredes que ainda estão de pé eu vou ser duas, ou três, ou quatro, ou sei lá quantas vou ser! Vou ser uma para cada momento, vou agarrar cada momento que caminha até mim com a forma de uma folha branca manchada de uma tinta preta, porque alguém, ao levantar-se da mesa derrubou o frasco de tinta preta sobre a folha e nunca mais voltou para limpar a tinta que pingava o chão e que escurecia o chão. E para agarrar cada momento tenho de ser muitas, tenho de ser muitas para colocar em cada uma de mim um momento diferente: alegrias separadas de tristezas, amor separado de ódio, gritos separados do silêncio, lâminas separadas dos pulsos, as palavras cruéis separadas do abraço que ainda sinto por ter perdido.
Não vou ser muitas. Não vou ser duas, ou três, ou quatro, ou sei lá quantas! Vou ser uma só, uma só a ser amarrada aos momentos, a ser agredida pelos momentos, a ser amada pelos momentos, a ser a que grita e chora e que tenta lavar o sangue das feridas abertas, a que abraça e é abraçada como se não houvesse mais nada e mais ninguém, vou ser só uma, vou ser só eu.
Sentada sobre o último momento de que me recordo, olho-me por dentro: sensibilidade, tristeza, vazio, loucura, amor, vozes, querer, querer muito, cuidar, proteger, dar-me sem querer receber nada em troca, nada. Olho-me por fora: cicatrizes. Existe uma lágrima a fugir de mim, a minha alma sangra, sinto-me tão longe e não sei onde estou, sinto falta, uma falta que não tem origem, não sei o que me falta. Oiço o riso, gargalhadas, pés que correm. Vejo, é uma criança que corre sozinha no meio de flores de todas as cores, uma criança que ri e que dá gargalhadas só porque as borboletas e os pássaros fazem voos magníficos sobre ela, deita-se no meio das flores e conta as nuvens, e ri das figuras que encontra nas nuvens, bate palmas e pula de alegria porque o gatinho perdido encontrou a mãe.
A criança vê-me, aproxima-se, toca-me, oferece-me uma flor e sorri. Eu pergunto: como te chamas meu amor, ela hesita, mas acaba por responder, chamo-me Joana e tu?