Todos nascemos transparentes. Puros e inocentes. Nascemos tão translúcidos que o sol consegue penetrar-nos o corpo até á alma, aquece-nos por dentro. E vamos crescendo envolvidos numa transparência que nos expõe ao mundo e o mundo olha-nos com olhos limpos para não nos sujar a brancura da transparência. Mas existe um momento em que caem do céu gotas de lama que aos poucos mancham os corpos outrora nítidos, são manchas de culpa atiradas pelos olhos da maldade (des)humana, pedaços de vidro que como lanças perfuram a inocência. Como veias abertas a inocência escorre para fora da nossa transparência e pelas feridas entra a escuridão e sujidade da lama. O tempo passa, as feridas agora curadas deixaram apenas pequenas cicatrizes, e por dentro dos que antigamente eram transparentes existe apenas um vazio que pesa preenchido pelo nada dos sentimentos imundos.
Mas existem resistentes, aqueles que ao serem tocados por gotas de lama correram para abrigos de amor. Como uma capa mágica o amor impediu que as gotas tocassem a pele dos transparentes, as lanças de vidro ficaram suspensas nas capas a alguns centímetros de ferir a inocência. Esses seres ficaram escondidos até que toda a tempestade passasse, e quando o sol voltou para aquecer as almas eles saíram. Ficaram espantados com todo aquele cenário, e já não reconheceram ninguém ali. No meio daquela escuridão que sabia caminhar destacavam-se eles, como pequenas estrelas. Depois de tanto tempo juntos foram obrigados a separar-se. Cada pequeno ser de luz caminhou numa direcção diferente entre a penumbra imunda dos outros seres. E á medida que andavam eram empurrados pelos que estavam sujos e impuros, feridos pelas lâminas da sua frieza. Ao longo do caminho foram descobrindo pequenos abrigos de amor onde, depois de tantos confrontos com aqueles que se esqueceram da felicidade da transparência, podiam refugiar-se para limpar a inocência que os preenchia.
Um dia no meio de uma tempestade de lama desapareceu o amor. Desapareceram os abrigos. Então com lâminas de pureza abriram feridas nos corpos frágeis e deixaram que a transparência lhes escapasse. Só tornando-se sujos poderiam suportar a ignorância dos Homens.